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Foto do escritorRaissa Ferreira

Cidade dos Sonhos (2001)

No hay banda, this is all a tape recording.


Cidade dos Sonhos

Além dos sonhos, delírios e desejos, Cidade dos Sonhos também diz muito sobre o próprio cinema e a fuga que encontramos nele. 


A atmosfera um tanto bizarra que Lynch cria aqui vem muito das atuações exageradas que permeiam essa primeira etapa do longa. O casal mais velho que acompanha Betty no começo e a própria jovem trazem falas e expressões carregadas. A personagem de Naomi Watts é inocente e deslumbrada, com roupas claras e um jeito quase angelical de ser, os closes em seu rosto destacam o encantamento nos olhos enquanto os planos abertos na cidade parecem dizer que esse lugar vai engolir Betty (ou já engoliu), por vezes se sobrepondo a ela, a consumindo. De tão boazinha, Betty não pensa duas vezes antes de ajudar a mulher sem memória que aparece em seu caminho. A morena que sofreu um acidente escolhe o nome Rita, nome de uma das maiores divas de Hollywood nos anos 40, e não é à toa, estamos na cidade das estrelas de cinema, onde atrizes chegam em busca da fama e são consumidas pela indústria. Conforme entramos mais no longa tudo se torna mais e mais onírico, uma das cenas iniciais já dá o tom do pesadelo que adentramos, mas conforme Betty e Rita chegam perto de descobrir a verdade, mais delirante se torna o filme. Enquanto seguimos uma investigação quase policial sobre a identidade de Rita, nasce um romance entre as duas. O que é interessante aqui é que nesse filme, de protagonismo feminino, a nudez das mulheres não parece forçada ou fetichizada e sim usada para o próprio prazer e interesse das personagens, não do espectador.


No longa, o cinema é retratado como uma máfia, onde são os homens de terno em salas fechadas, e somente eles, os tomadores de decisões. O diretor não tem liberdade criativa, o poder está nas mãos da indústria, o que não parece nada irreal. Não há mulheres tomando decisões, para elas o papel é atuar, estrelar e serem usadas por essa fábrica de sonhos. No teste de atuação de Betty, a produção a trata tão bem que parece um delírio, o diretor é retratado como um inútil sem sentido e o ator um assediador, já Betty entrega uma performance incrível, que a faz parecer até boa demais para o projeto. Em seguida, quando ela presencia outro teste, na troca de atrizes que cantam há uma quebra de ilusão, o que parecia real se torna artificial, é tudo uma gravação, um playback. O mesmo ocorre na boate Silêncio, onde é afirmado para nós com todas as letras: é tudo uma gravação. A mulher que canta traz tanto sentimento em sua performance que emociona as espectadoras de dentro e de fora do filme, mas essa ilusão também é quebrada, a voz já estava gravada, foi tudo atuação, simulação. É como no cinema, mas isso não quer dizer que os sentimentos provocados em nós não sejam reais. 


E assim como a ilusão da música é quebrada, entramos no pesadelo do sonho que acabamos de ver. A própria atuação, a ambientação e os figurinos já trazem um contraste entre tudo que acabamos de ver e o que veremos a seguir. Betty agora é Diane, o oposto completo da jovem mocinha. Diane é um caos, ríspida, triste, com uma carreira que nunca deu certo e só a leva a papéis secundários. O ponto em comum entre os dois mundos é o amor entre as duas mulheres. Mas agora Rita é Camilla, diferente da dependente e doce mulher com amnésia, Camilla é uma atriz bem sucedida que parte o coração de Diane de forma cruel, ficando com o diretor. Esse diretor, que antes nos foi mostrado como um perdedor, falido e traído, sem poder criativo, agora é um homem bem sucedido que aproveita sua posição para conquistar a mulher que quer. Tudo parece estar em oposição entre os dois momentos do filme, como se quando Diane tomou uma decisão drástica, sofrendo por amor, a tragédia resultante criasse uma fuga total da realidade. Como se uma realidade insuportável fabricasse um sonho.


Mas já está tudo gravado, não há como modificar o pesadelo, não há como escapar do destino. E assim como essa fuga, o cinema também é feito de ilusões, de pessoas interpretando papéis, de músicas gravadas sem banda, de sentimentos falsos e emoções montadas para criar um sonho, um mundo de ilusão construído para nós, espectadores, fugirmos um pouco de nossas duras realidades.


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