CPH:DOX 2025 | Azza
- Raissa Ferreira
- 31 de mar.
- 4 min de leitura
Vínculo entre Stefanie Brockhaus e Azza acentua carisma da protagonista, retratando com admiração sua relação de independência atrás do volante
Muitas vezes, filmes lançados no mesmo período dialogam entre si, ainda que sem saberem disso. É o que acontece com Azza e Writing Hawa (Escrevendo Hawa), ambos na seleção do Festival Internacional de Documentários de Copenhague de 2025, dirigidos por mulheres e retratando protagonistas femininas. Em Escrevendo Hawa, Najiba Noori tem o intuito inicial de realizar um documentário sobre a mãe, que está em processo de busca de sua independência aprendendo a ler e escrever. Stefanie Brockhaus confere um olhar parecido a Azza, por sua intimidade e admiração com a personagem central, e por construir a narrativa ao redor de uma atividade que faz com que Azza se empodere, o ato de dirigir, neste caso. São duas coisas bem simples para mulheres em diversos lugares do mundo, a alfabetização e a condução de veículos, mas bastante limitadas em regimes autoritários, principalmente baseados em religião, que impõe barreiras no desenvolvimento e independência de meninas e mulheres.
Na Arábia Saudita, Azza era impedida, por causa de seu gênero, de conduzir um carro até o ano de 2018, e foi justamente dirigir que a fez, ainda contrariando as leis alguns anos antes da liberação, escapar de um casamento em que não queria mais estar e conquistar as rédeas de sua vida. Dirigir garantiu que ela se deslocasse fisicamente para longe da relação forçada, na qual estava há anos, e se tornou além de seu sustento financeiro, ferramenta para ensinar outras mulheres a terem sua própria independência. O carro virou um objeto empoderador para essa protagonista, filmada pela cineasta Alemã com imensa admiração. Não fica claro se Azza e Stefanie eram amigas antes das filmagens começarem, e por isso se deu a ideia do documentário, ou se a relação aflorou durante a produção, mas fica bem evidente nas trocas entre as duas, intermediadas pela câmera, como um grande carinho foi crescendo nesse processo.
Stefanie começa seu longa no banco de trás, captando como Azza ensina outras mulheres a dirigem e a não se intimidarem por homens nas ruas. A posição atrás do volante a torna forte, alegre e confiante, como se o espaço ali dentro, limitado pelas portas e janelas de vidro, fosse seu universo particular de liberdade. Aos poucos, a diretora vai se movendo até o banco do passageiro e, com isso, conhecendo melhor a trajetória de quem observa. Azza divide sua história, das tradições que limitaram sua vida, o casamento forçado, as filhas e o filho que tanto ama e busca proteger do pai, com quem não tem contato, até sua jornada de se descobrir e ser livre, vivendo em seus próprios termos. A dinâmica das cenas dentro do carro, em estradas e nas areias, caminha com o tom da jornada de Azza, em frente, ultrapassando obstáculos, com horizontes sem fim em perspectiva.
Assim, a cineasta não se coloca em tela, mas se faz muito presente nesses diálogos. A câmera é quase dissolvida e as conversas materializam Stefanie, também pela presença de sua voz, mas a forma como as cenas são filmadas também criam uma proximidade e intimidade que atravessa a tela, transformando a pessoa espectadora em confidente de Azza ao mesmo tempo. O filme desloca-se da cidade, da compreensão concreta da figura geral da vida da personagem, para uma viagem distante, em meio à natureza, que representa um mergulho mais profundo e sensorial na personalidade, pensamentos e reflexões de Azza sobre si mesma e sua história.
Sempre que encontram outras pessoas, são sublinhadas pelas interações as barreiras e o poder (ou falta dele) de agência das mulheres na Arábia Saudita, seja por uma que rebate o marido e diz-se bem confortável no papel de dona de casa, ou pela filha agredida pelo pai ao cortar o cabelo curto. Mesmo Azza, essa mulher tão forte, precisa ter uma conversa sensível com o marido sobre a viagem que fará com a equipe de filmagem, praticamente sozinha em seu carro, sem um “guardião homem”. Ainda que o companheiro não a limite, existem resistências que retratam como essa sociedade, mesmo na mente das pessoas mais livres, exerce opressão às mulheres, e também a coragem e perseverança de Azza de enfrentar as barreiras que lhe são impostas e as arrebentar.
Stefanie serve tanto como operadora do registro quanto amiga, aproveitando o vínculo para captar momentos mais autênticos, mas sem interferir nas interações. Essa certa passividade, digamos, ressalta a independência de Azza, que destaca-se por como se vira em qualquer situação, seja quando um homem a intimida em outro carro, ou em uma manobra difícil de se realizar no carro. Ela impressiona a todos dentro e fora do filme, transbordando a admiração que a cineasta sente ao ver sua força. Como uma personagem muito carismática, é difícil não se encantar junto de Stefanie por Azza.
Sobre o paralelo inicial, Escrevendo Hawa é muito mais pessimista, pois sua observação encontra apenas limitações e uma estagnação total no avanço por direitos, enquanto Azza vê suas pequenas conquistas com mais entusiasmo e de maneira mais individual, embora destaque o quão desigual é a vivência feminina ali em relação ao mundo. É mais otimista porque sua própria protagonista enxerga seus avanços com muita alegria e, mais ainda, a possibilidade de levar autonomia a outras mulheres, uma aula de direção por vez.
Esse texto faz parte da cobertura do CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2025
Nota da crítica:
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