Entre a sombra da igreja e as invasões de corpos, Arkasha Stevenson dá olhar e foco bastante feminino com consciência e paixão pelo gênero
Em tempos que o cinema de maiores orçamentos e visibilidade se entrega a remakes, sequências e filmes de origem aos montes, trabalhar com A Profecia, horror dos anos 70 de Richard Donner, não é estar em território inexplorado, mas é certamente um ambiente bastante seguro para se brincar e trabalhar por cima. Apesar dos remakes e sequências, o próprio filme original não carrega um peso que o estabelece como uma obra difícil de se mexer no imaginário dos fãs. Chegando em 2024 pela gigante 20th Century é talvez até fácil dizer que se dá como uma tela em branco para uma parcela do público. Para os fãs do gênero, o nome Damien já diz muita coisa, e aos mais íntimos com a obra de 1976 não é difícil se abrir ao que a praticamente iniciante Arkasha Stevenson tem a propor. O interessante é que, ainda que o longa vá de encontro à história de Damien, traça seus próprios caminhos e ideias sem depender dele, constrói sentido com sua referência mas carrega autenticidade na abordagem e modificações que se costuram a sua proposta. A lógica de que para se contar a história antes do nascimento do anticristo deve se retornar ao útero torna A Primeira Profecia uma obra bastante próxima na linha do tempo e com espaço para colocar o feminino em destaque. São os corpos de mulheres, suas ações e opressões que preenchem a narrativa, enquanto os homens se tornam acessórios à trama, instrumentos que facilitam uma coisa ou outra. Mas o mais fascinante é como Stevenson demonstra tanta consciência para trabalhar no terror, fugindo de grande parte do que vem sendo feito atualmente, com um olhar que não é totalmente fresco, mas com paixão pelo gênero, com vontade de fazer horror.
As metáforas, uma abordagem mais alinhada ao psicológico traumático individualista e a fuga à frontalidade que se apega meramente a simbologias, são todos elementos presentes nos filmes de terror mais recentes que tiveram maior alcance e que felizmente não são utilizados dessa forma em A Primeira Profecia. Nem pelo susto fácil, nem pela abordagem psicológica, a diretora encontra seu próprio caminho para construir um desespero que parte de Margaret (Nell Tiger Free) mas que se reflete em um comportamento coletivo das mulheres a sua volta. Os enquadramentos que centralizam sua protagonista, mantendo o hábito de freira como uma assombração nos cantos da tela, e até materializando essa presença em dado momento para reforçar esse imaginário, destacam a instituição da igreja como um fantasma de controle aos corpos femininos, puramente pelo trabalho das imagens. Da mesma forma como a câmera se movimenta como quem tenta visualizar algo, numa busca de Margaret por enxergar um nascimento, enquanto as lentes se movem de um lado ao outro, construindo por recortes o parto vaginal, algo que raramente vemos nesse tipo de cinema, para unir o natural, do corpo, da humanidade, com a fantasia, ao expor uma mão demoníaca sendo parida pela genitália. Stevenson não foge da frontalidade, mas não aborda o sangue e a visceralidade de forma mais direta e crua, e o mesmo ocorre em suas outras escolhas, ela encontra um caminho quase no meio, mas muito consciente do que faz. É o mesmo quando o corpo do rapaz se parte ao meio, ou quando a cabeça do padre abre uma rachadura - que remete a uma vagina -, são sempre os olhos e rostos dos outros que constroem primeiramente no imaginário do espectador a imagem que virá a seguir, e vem, sem medo de exibir.
A Primeira Profecia carrega cenas muito potentes nessa linha, outro grande destaque é o suícidio de uma das freiras, novamente iniciando o horror construído pela reação externa, de quem observa dentro da cena, para em seguida preencher a tela com uma mulher em chamas, se jogando enforcada, batendo repetidamente em uma janela. O filme leva seu tempo, não tem pressa nesses momentos, saboreia o terror e seus elementos e mesmo quando elabora simbologias, não depende delas - a mulher queimada em um sentido clássico da igreja católica existe como referência mas não se conecta profundamente como metáfora, é simplesmente uma oferenda a uma das criações malignas da instituição, embora possa ser lido em mais níveis. Da mesma forma, a violação de corpos que ocorre desde o ínicio, nas cenas de confissão que relembram a criação de Margaret e suas irmãs, e se remonta no estupro da jovem para que Damien e sua irmã venham ao mundo, usa toda atmosfera criada ao longo do filme, do controle e manipulação de mulheres pela igreja, mas o liga diretamente a uma figura de fantasia, uma besta que se integra ao todo mesmo que nunca seja diretamente olhada ou discutida. As temáticas, portanto, importam menos a Arkasha Stevenson que o terror, elas existem, estão lá, trabalhadas por meio do gênero, mas ele é o destaque, nunca o contrário.
Além da forma como o parto é retratado, poucas vezes vemos uma retratação de noviças e freiras fora de suas figuras de fé como A Primeira Profecia faz, colocando Margaret sem suas roupas tradicionais, de cabelos soltos, maquiada e usando seu corpo para seu próprio prazer, sem pesar ou focar na culpa, mas a dissolvendo aos poucos para que ela possa se enxergar como mulher e não ferramenta de uma instituição religiosa. Para além da manipulação que isso denota dentro da trama, as cenas independem da intenção para funcionarem de forma fascinante, não usam o pecado como punição para a protagonista, é quase uma libertação momentânea que a permite existir além dos controles impostos por toda sua vida pela igreja, mesmo que ali, ocultamente, esteja esse mesmo domínio. Interessante também como as mulheres aqui são as únicas tomadoras de ação que realmente importam, principalmente a Irmã Silvia (Sônia Braga), que opera como essa grande mente arquiteta dos planos malignos, enquanto os padres são meros acessórios que facilitam aqui e ali as soluções - é o caso do deus ex machina, quando Margaret é resgatada e os documentos são encontrados por um dos padres. Ainda que se usem grandes atores para os papéis masculinos, e eles tenham suas funções, as forças narrativas são Silvia, Margaret, Luz, Carlita e as outras, mesmo que em menor parcela.
A Primeira Profecia é menos sobre demônios e mais sobre controle, opressão e violação, mas tudo pautado no horror e a serviço do gênero. É menos sobre Damien e mais sobre o corpo que o gera e toma ação, acerca das mulheres que agem, para o bem ou para o mal e uma continuação que não se sabe ainda onde quer chegar. É fato que as sequências finais parecem algo encomendado comercialmente para se costurar melhor a um futuro produto, mas se o que Arkasha Stevenson brincou e modificou na história dos anos 70 vai render um foco maior em Margaret e na irmã de Damien, eu já estou muito interessada.
Nota da crítica:
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