Se divertindo com seu próprio cinema, M. Night Shyamalan trabalha nas divisões e na artificialidade um suspense cômico que está sempre em busca da próxima saída
Depois de alguns anos assistindo aos filmes de M. Night Shyamalan é quase como se os fãs conhecessem esse autor pessoalmente. Suas assinaturas são muito características e vão se consolidando ao longo do tempo, mas é visível como sua abordagem narrativa também foi se moldando às evoluções do mundo, notando tanto as mudanças sociais quanto técnicas para as inserir em seus universos. Em Armadilha, Shyamalan se prova ser realmente um cineasta de divisões, em seu último longa é a divisão das telas que se destaca, embora economizar nos planos não seja uma novidade para ele, ao usar esse ambiente de espetáculos com grandes telas e uma dinâmica de gato e rato, o diretor aproveita cada espaço e recurso para construir suas composições, do que parece ser inicialmente uma paranoia do pai (Josh Hartnett) à constante proximidade dos policiais com o criminoso. Porém, ele também vai fragmentar sua narrativa, dedicando boa parte do filme a acompanharmos o que seria um vilão, nos aproximando dele visualmente pelos muitos closes que existem no longa, mas também na construção que estimula a torcida para que ele sempre encontre a próxima forma de escapar, para que aquilo tudo seja prolongado e sua personalidade atestada mais uma vez pelos outros personagens. No restante, é como se realmente fossem diferentes atos, o próximo se concentrando em Saleka Shyamalan, quase subvertendo a lógica inicial para colocar Cooper realmente como um vilão comum neste momento, e entregar à cantora pop o papel de escapar das armadilhas impostas, e, em seguida, o longa retorna ao serial killer como foco, mas com alguma seriedade conferida a seu drama particular e familiar. Assim, Shyamalan provavelmente dividirá o público mais uma vez, como faz em todo e cada trabalho, mas entre seus vícios, alguns cansativos, e virtudes, se mostra aqui um autor se divertindo muito com sua obra e assim, faz seu filme mais engraçado.
O tom cômico empregado na artificialidade desse mundo começa e se sustenta muito pela atuação de Josh Hartnett, que dá vida a um pai de família esquisito e sedutor, dividido também pela sede de matar e o amor e carinho com a pequena filha, justamente sua ruína. A postura caricata do homem quase grita que ele não engana ninguém, e, ao mesmo tempo, faz todo mundo cair em sua lábia, algo próximo da loucura e excentricidade de outro famoso serial killer do cinema, Patrick Bateman, de Psicopata Americano, mas com um charme mais conservador. A proximidade criada na observação é uma cilada também para o espectador, que não sabe nos minutos iniciais que está sendo colocado lado a lado com um assassino cruel e que ao ponto em que isso será compreendido, sem grande gestos explicativos, já estará também seduzido por Cooper e compelido a torcer por sua escapada, o que não é exatamente comum ao cinema do diretor. A atmosfera do show vem exatamente desse ponto de vista, do pai pouco interessado no que acontece no palco ou em quem é a estrela pop, focado na realização da filha (Ariel Donoghue), mas mais ainda em tudo que acontece ao redor, nos grupos de policiais, possíveis portas que possa usar e rotas de fuga que pretende criar. É, portanto, esperado que o palco apenas divida o foco nas cenas, assim como o grande público, Cooper é o centro e sua atenção é constantemente dividida, logo a grandiosidade do espetáculo está em como sua mente arquiteta ideias, não em Lady Raven e a admiração do público por ela. Dessa forma, Shyamalan aproveita celulares e telões, coloca no mesmo plano tudo que interessa para a atenção do protagonista, seja focando em algo em primeiro plano e deixando em desfoque outros elementos, pelo split diopter ou compactando tudo lado a lado, sua construção visual eleva o jogo de caçada em que o que seria a presa está sempre um passo à frente e, portanto, a visão do espectador precisa estar afiada a tudo que ele capta. É um filme de imagens mais achatadas, que corroboram a mente de quem está precisando escapar, sendo na segunda parte Lady Raven quem se coloca nessa posição de visualizar muitas possibilidade em um mesmo plano - ainda que perdendo a força da dinâmica anterior -, e que valoriza os closes para maximizar a sensação de clausura que há no thriller de perseguição, porém exagerando os elementos e pontuando a artificialidade deles para conferir humor à trama.
É tão cômico como Cooper consegue enganar qualquer um, embora sempre soe como um lunático mentiroso, quanto uma cantora famosa pedir ajuda por meio de uma live de instagram ao invés de chamar a polícia. O ideal da família perfeita e a narrativa que sempre parece caminhar para uma reviravolta que não vai acontecer, somente para se manter nesse ciclo de fugas, mostra um Shyamalan praticamente brincando com seu próprio cinema, então não é surpreendente que ele vá em algum momento olhar com mais seriedade para o drama, mesmo que enfraqueça o que vem criando, e parar tudo para garantir que exista ao menos uma cena dedicada a explicar alguma coisa, mesmo que seja um fato totalmente irrelevante. Ele esfria seu jogo conforme caminha para o desfecho, algo cada vez mais comum em seus trabalhos, mas ainda se mostra um autor criativo e de assinatura muito forte. O que realmente pode ser uma surpresa é como Armadilha é seu filme mais engraçado e divertido até então, e como o ciclo criado aqui fica impossível de ser rompido, obrigando o diretor a deixar um final que garanta exatamente isso, a interminabilidade da caçada.
Nota da crítica:
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