Em filme para o streaming, Scott Derrickson se diverte com os gêneros e elabora, dentro da fantasia, imagens que mereciam a grandeza dos cinemas
Do filme mais genérico de ação, com ex-soldados de guerra americanos, até uma energia de Missão: Impossível, Entre Montanhas (The Gorge) tem um pouco de tudo desde sua introdução. É um filme que pode ser pensado em partes, pois transita sua narrativa a partir dos gêneros, sendo esse primeiro pedaço mais voltado a esse clichê da personagem estereotipada "russa", a vilã típica de Sigourney Weaver, milionária da grande corporação malvada, os lobos solitários cheios de traumas e uma missão misteriosa. Assim como nos filmes de Tom Cruise, o protagonista é levado a descobrir que a mesma empresa que o contrata é o verdadeiro inimigo. Interessantemente, podemos pensar o romance nesse paralelo da mesma franquia. Missão: Impossível sempre garante um interesse romântico a seu personagem, mas esse relacionamento é constantemente pensado dentro da ação e a partir dela, não se descola, depende completamente do desenvolvimento de Cruise em sua empreitada frenética. O romance é peça da ação, então é esse gênero que define o tom e seu desenrolar. Importa muito mais a sobrevivência daquele homem e seu sucesso do que qualquer coisa em seu relacionamento, portanto.
Em Entre Montanhas, no entanto, Scott Derrickson vira uma chave para determinar que a partir de certo ponto, o romance comandará sua narrativa. Então a história de Levi (Miles Teller) e Drasa (Anya Taylor-Joy) passa a ser contada dentro dessa lógica. O horror, o suspense e a ação continuam existindo no filme, mas, nessa etapa, quem dá o tom é o romance. O longa passa a diminuir a distância entre os dois ao mesmo tempo em que a destaca, criativamente construindo planos e contraplanos que funcionam por meio das lentes de seus binóculos, diálogos que existem a partir de cartazes escritos à mão e momentos em que o sentimento vai sendo elevado pouco a pouco, enquanto a pessoa espectadora se delicia ao observar duas pessoas se apaixonando sem nem ao menos se tocarem. Essa atmosfera é garantida também por uma divisão que não escanteia Drasa a uma mera coadjuvante, mas alguém tão forte, inteligente e hábil quanto seu parceiro, e que, nesse mesmo sentido, tem agência, domínio em sua narrativa. Os dois carregam um trabalho um tanto simples de construção além dessa realidade apresentada, portanto é fácil os ver em pé de igualdade na trama.
Pausa. Metralhadoras disparam centenas de tiros e dezenas de homens-assombração são mortos em um ritmo frenético. A cena acaba e o romance retorna - porém nunca deixou de existir, já que o tempo todo um protege o lado do outro, mas é a ação que pega o volante - até que seja impossível para aqueles dois personagens passarem mais algum tempo sem dividirem o mesmo ambiente. A ideia inserida no começo, do homem que morre ao cumprir sua missão, implica em uma finitude que transforma o amor dos dois em urgência, uma necessidade com prazo estipulado. Novamente, Derrickson engata outra marcha e, em uma virada interessantíssima, a cor invade a tela para que quem conte a história a partir dali seja a fantasia, o sci-fi.
A ação, o romance, o terror, nada disso deixa de existir, mas Entre Montanhas é uma obra que transita de fato, entregando o domínio de sua narrativa à forma. Se, na parte em que o casal se apaixona à distância, os planos trabalham o olhar de ambos através do abismo que os separa, as cenas criam a expectativa de seu primeiro encontro e a música arquiteta a intimidade entre ambos, o próximo momento os define como guerreiros em meio a um apocalipse, a urgência não é mais o toque, o afeto, mas sobreviver e escapar. As cenas se abrem ao entorno para explorar seus mistérios, suas cores e elementos obscuros, que deixam um pouco a mística do horror sobrenatural, que havia enquanto não era possível compreender muito bem o abismo desconhecido, e passa a ser muito mais fantástica, pois a ideia de mundo é finalmente dada, desvendada e atribuída a outra forma.
A conspiração revela um roteiro muito simplista em alguns conceitos, como a vilania corporativa, o centro do conteúdo da revelação e a ideia de uma certa representação da guerra fria que só pode ser superada com esses dois elementos de origens opostas trabalhando juntos, mas, a maneira como Derrickson passeia pelo cinema, gêneros e referências, permitindo que sua direção se altere e abrace as atmosferas propostas, segura bem qualquer diálogo mais capenga. É por isso também que justamente a introdução parece menos interessante, pois é a parte em que fica mais fácil identificar as fraquezas, até que o romance, o horror e a fantasia enriqueçam a trama. As cenas coloridas, especialmente, dominadas por um sci-fi de videogame, são fascinantes, pois denotam certa diversão desse cineasta em sua feitura.
Mesmo com tantas mudanças, elas são justamente o ponto forte e não um atestado de instabilidade. Entre Montanhas sustenta suas formas e, se há algo além de beleza nas cenas, em dado momento, é porque o restante construiu o que era necessário na relação destes personagens para que suas vidas e destinos importem a quem assiste. O final feliz parece uma tendência constante atualmente no cinema, como se romper a expectativa da pessoa espectadora fosse perigoso ou permitir que as coisas não estejam bem definidas em tela ao final da última cena seja botar tudo a perder. Assim, o longa não surpreende nesse ponto, faz o esperado, mas, também se atém ao tom que o romance pede, satisfaz os corações, torna a única lógica inegociável - entre homens fantasmas, pesadelos assustadores, conspirações americanas de guerra e vilões corporativos -, a do amor prevalecer.
Nota da crítica:
3.5/5
.
Comments