George Miller abre espaço no caos frenético para uma aproximação íntima da protagonista, dando novos contornos à saga de vingança e outra emoção a sua grandiosa ação
Pensar em Mad Max sempre remete a uma narrativa acelerada e desenfreada, do inglês rápido e difícil de compreender do primeiro filme em 1979 até o épico com todos os motores no máximo em 2015, a franquia sempre se concentrou em ações específicas em períodos de tempo bem delimitados, o que permitia uma compreensão do universo criado por George Miller, e destruído pelos homens, a partir do desenrolar dos acontecimentos e das motivações de Max, sem momentos extremamente didáticos usados para situar o espectador nessa sociedade apocalíptica, era pegar carona e se jogar nas nuvens de poeira sem fazer muitas perguntas, apenas sentindo a ação. Agora, em Furiosa, um filme de origem da importante personagem de Estrada da Fúria, Miller sente a necessidade de se organizar melhor, estabelece capítulos e rotula os pontos importantes e já conhecidos da franquia. Toda uma vida será contada e diversas fases serão atravessadas, portanto, a narrativa passa por uma mudança em sua estrutura que não apenas conversa perfeitamente com tudo que vem antes, como não usa suas próprias referências para gritar banalmente algo aos fãs ou deixar piscadinhas, sua trama se une naturalmente como se a história toda de Furiosa fosse escrita apenas uma vez e separada em dois filmes que constroem uma única personagem com três atrizes diferentes, mas com as mesmas motivações, emoções e objetivos. Começando o trabalho por Alyla Browne, a pequena Furiosa já fortalece uma personalidade dada por olhares marcantes e um silêncio rancoroso, sedimentado na dureza com que Anya Taylor-Joy vive a juventude e parte marcante da vida dessa protagonista. O atravessar desde a infância serve a um propósito diferente na saga, que aproxima intimamente o espectador da personagem, estabelecendo uma narrativa dramática a ela que não mais prioriza a ação à humanidade, que não usa somente máquinas para desencadear emoções, mas vincula quem assiste diretamente a essa mulher.
Se em Estrada da Fúria era quase impossível respirar, com apenas pequenas pausas para organizar e compreender uma sequência caótica atrás da outra, Furiosa: Uma Saga Mad Max não perde completamente essa paixão pela ação descontrolada, mas a alterna a momentos desacelerados em que a precisão se coloca acima do conflito frenético. Taylor-Joy é silenciosa, seus olhos dizem tudo, e eles mesmos se colocam frequentemente mirando, buscando acertar algo, encontrar soluções e alvos exatos, não é que Furiosa não tenha sido sempre inteligentíssima ao operar suas máquinas e armas no meio da guerra, mas essa jovem protagoniza momentos em que todo o raciocínio é colocado enquanto respiramos junto a ela, como sua mãe faz nas primeiras sequências. E isso está quase sempre aliado a alguma emoção, uma pessoa por quem se sente afeto está em perigo, então a precisão é colocada em foco para minimizar os riscos, ou o alvo da maior vingança se esconde, então a mira facilita esse encontro. É tudo mais localizado agora, Miller consegue tanto engrandecer seu universo, quanto olhar para ele por um microscópio buscando detalhes, algo que antes morava muito mais em uma ação megalomaníaca em que personagens iam sendo mortos e despedaçados pelo caminho porque o todo era muito maior e o caos mais importante. O diretor pode até ter ensaiado vínculos humanos mais importantes antes, mas é só em Furiosa que isso se concretiza dramaticamente à frente do universo e suas máquinas, a relação entre Charlize Theron e Max em Estrada da Fúria, por exemplo, remete a alguma crença da mulher nas pessoas e uma conexão afetiva (esse foco fica mais em outro casal no longa anterior), mas que não se aprofunda porque importa mais a loucura, o funcionamento da sociedade, as corridas entre carros e a salvação do grupo. No entanto, o filme de origem vai olhar para isso com outras lentes, realmente pontuando um interesse amoroso que não apenas faz Furiosa agir de outra forma, como também incita o espectador a ter um sentimento mais acentuado, uma torcida, uma empatia muito maior com ela.
Quanto mais avança em seus capítulos, mais interessa a George Miller o drama particular de sua protagonista. A guerra, então, em que carros, motos e guerreiros se unem no caos, se torna um segundo plano e o filme se concentra em Furiosa de forma íntima, é ela quem dá vida à ação de Mad Max agora, não o oposto. Sua motivação, a vingança, que sempre foi a alma da franquia lá no começo, agora é colocada de forma muito mais pessoal. Essa jovem que segue viva precisando encontrar o seu valor nas sociedades em que acaba caindo, sobrevive enquanto mulher ocultando seu gênero, fugindo da função em que seria presa se tornando uma ferramenta útil por suas habilidades, mas Miller não se prende a essas questões como uma bandeira que atesta o valor de suas intenções, e assim como sua jornada se liga perfeitamente de forma natural entre os filmes, a progressão de Furiosa funciona como uma engrenagem focada em si mesma, como essa jovem existe e opera no mundo em que foi lançada, com um fascínio específico por sua figura e personalidade, construindo uma mitologia acerca de sua existência.
Assim, há realmente um desaceleramento no que se refere à forma como a franquia lida com a ação, o longa freia e olha verdadeiramente para Furiosa, para suas emoções e ações, não somente isolada, mas em relação a outros ao seu redor, a compreendendo dentro desse universo como peça única com todas suas particularidades, motivada por sangue e coração, não somente gasolina e motor. Se não existe esperança no mundo destruído pelos homens, ela própria personifica esse sentimento e o leva para o futuro. Uma aula de George Miller sobre como construir grandes heroínas.
Filme assistido a convite da Warner Bros. Pictures e CDN Comunicação
Furiosa: Uma Saga Mad Max chega aos cinemas brasileiros em 23 de Maio de 2024
Nota da crítica:
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