Evocando as comédias malucas do cinema, Leonardo Mouramateus dá vida a uma protagonista sedutora, cheia de máscaras e amiga do acaso
Talvez uma boa parcela do público que hoje rirá com Greice não faça a ligação com outras protagonistas do cinema que não só criavam confusões, mas eram melhores amigas delas, viravam de cabeça pra baixo a vida dos personagens masculinos que estavam próximos e nessa fina linha de excentricidade e charme, eram totalmente apaixonantes. Katharine Hepburn foi a mais marcante delas, provavelmente, mas, nos tempos de hoje, Leonardo Mouramateus não vê apenas a necessidade de atualizar e trazer para perto da nossa realidade brasileira essa mocinha de moral duvidosa, como também expandir essa leitura para o contexto em que está inserida. Greice (Amandyra) é o que hoje chamamos de fanfiqueira, uma mulher que ficcionaliza a própria vida e trabalha dentro dos termos da juventude contemporânea. Suas aventuras românticas parecem uma sitcom, mas ao contrário das narrativas que habitualmente colocam furadas heteronormativas em sequência até encontrar o homem ideal, é Greice, ao mesmo tempo, a cilada e a boa paixão. Aliada do acaso, ela faz sua própria história e, assim, o filme não se constrói numa linha direta e reta, mas costura-se enquanto a protagonista vai desenhando seus desvios e suas mentiras se tornam realidades, concretas ou imaginadas pelos espectadores dentro e fora do espaço fílmico. Nós, que assistimos, somos tão deixados levar por essa contadora de histórias quanto aqueles que estão a seu lado e estes são peças fundamentais para elaborar seus roteiros. Greice não é ninguém sozinha porque todo enredo necessita de mais atores e assim como suas referências, não é a maldade ou a vontade de ganhar vantagem que move essa mulher, mas uma esperteza que a faz grande marinheira nesse mar difícil de navegar que é a vida.
Tudo que envolve a faculdade em Lisboa demonstra intimidade do autor com o espaço, porém, ao contrário de cineastas que ainda estão muito limitados e presos a esse lugar acadêmico, Leonardo Mouramateus aproveita o que conhece para construir sentido. Esse lugar clássico e imponente se torna pequeno perto da presença dos jovens tão vivos e da forma como lidam com sua existência. A trama de uma obra de arte queimada, que já abre o longa, por si só já denota que há uma quase transgressão desse culto rígido à arte e também conversa com as confusões de Hepburn e um objeto de museu em outro filme. Mouramateus pega esses prédios elitistas e coloca pessoas livres e irreverentes, adentrando uma trama de whodunnit que conecta toda história de Greice, mesmo que seja completamente irrelevante ao público saber a resposta final. Importa mais o que ela faz a cada passo que dá, cada mentira inventada, cada máscara que veste, do que compreender se queimou o quadro, e, se o fez, com que propósito. Essa vivacidade de cada momento fabricado e manipulado por Greice extrapola o texto e constrói uma ambientação quase artificial para o longa, da forma como os personagens se movem pelos espaços, como a câmera os filma e toda iluminação e fotografia, tudo conversa com uma estética mais plástica e de encenação marcada. Poderia até ser incômodo se o todo não fosse bem trabalhado ao redor disso, e Greice opera como uma ilusionista nesse sentido, se existem fraquezas que poderiam distrair o espectador, ele provavelmente não consegue focar nelas porque está concentrado nesse jeitinho sagaz da protagonista e na próxima narrativa que ela vai tecer para si mesma.
Dessa forma, somos jogados em uma situação após a outra que de maneira pouco clássica conectam a história de Greice tentando desvendar aos poucos a verdade que ela quer apresentar sobre os fatos. Henrique é um tanto como o espectador, seduzido pelo jeitinho inteligente dessa mulher de levar as situações a seu favor, totalmente iludido, representa o romantismo que apela a um lugar comum, mas Greice é espírito livre e é até difícil torcer por eles, porque é mais interessante esperar seu próximo ato. De forma bastante literal, Mouramateus utiliza o retorno a Fortaleza e a presença da mãe como único desarme de sua personagem, é um áudio bastante sincero que desmascara Greice e a faz vulnerável pela primeira vez. Mas não é uma redenção típica e banal que esse longa procura, até porque, a moral duvidosa não é uma problemática, e, sim, uma complexidade agradável, então seguem-se a ilusão e as ficções de Greice sem desfecho concreto, ainda há muito mar para se inventar e aprender a navegar.
Filme assistido a convite da Vitrine Filmes e Primeiro Plano Comunicação
Greice chega aos cinemas brasileiros no dia 18 de Julho de 2024
Nota da crítica:
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