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Crítica - O Quarto ao Lado (2024)

Foto do escritor: Raissa FerreiraRaissa Ferreira

Em sua forma mais sóbria e refinada, Pedro Almodóvar provoca o desconforto cômico em reflexões sobre um dos obstáculos mais incômodos da vida

O Quarto ao Lado Crítica

Um cineasta de carreira sólida, longa e bem estabelecida, Almodóvar já é capaz de operar suas obras com tamanha intimidade que quem assiste se sente imediatamente transportado para seu universo. A trilha sonora, de músicas que não são intrusas, mas convidadas de honra, as cores vibrantes e cenários vivos, a atmosfera novelesca dramática, seus elementos são grandes conhecidos do público, imediatamente identificados assim que seus filmes começam. Nesse lugar que se abre no espaço-tempo quando a tela projeta e materializa as ideias de Almodóvar, vimos ao passar do tempo seu trabalho se tornar mais refinado e, agora, pela primeira vez em um longa, mudar de idioma, mas nunca de personalidade. O Quarto ao Lado é certamente seu filme mais sóbrio, de menor escala, trabalhando as emoções em espaços mais delimitados, com uma percepção de mundo diminuta frente a outros de seus longas, mas isso não é jamais dizer que é um filme inferior. Para lidar com a morte a partir da tensão entre suas duas protagonistas, Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), a obra aproveita a excentricidade da figura de Swinton e o humor comum do diretor para que a finitude seja um desconforto provocativo à pessoa espectadora. O riso vem como uma válvula de escape do corpo que não sabe como processar bem a frontalidade com que Martha se relaciona e fala de seu estado de saúde e seu destino escolhido. Ingrid é esse sentimento inquieto, a escritora que acaba de expor ao mundo seu medo da morte e agora é confrontada diretamente com ela. Assim, Almodóvar delimita nesse espaço o que são as emoções e responsabilidades individuais, olhando o morrer como uma parte estranhamente comum da vida, um obstáculo a ser ultrapassado. 


Os flashbacks que constroem o passado, algo também habitual nas narrativas do cineasta, dessa vez não fazem do presente uma consequência narrada a partir do protagonismo do que passou, mas servem como um apanhado de memórias de uma vida que não termina com pesar. As duas antigas amigas, afastadas, relembram ou apresentam pedaços da jornada de Martha, plenamente em paz com seu fim. Esse acordo que a mulher doente faz consigo mesma é o fator de provocação que curiosamente também está em outro filme deste ano, Dying - A Última Sinfonia, em que um artista decide encerrar sua vida com o apoio de um amigo do outro lado da porta, uma espécie de espectador dos últimos momentos. Entre os horrores da guerra e um mundo que está claramente acabando na frente dos nossos olhos, como bem pontuado pelo personagem pessimista de John Turturro em O Quarto ao Lado, ainda há tamanho incômodo na humanidade em alguém que escolhe seu próprio fim como quem agenda uma tarefa corriqueira. Martha é então inserida nesse processo ritualístico mas sem grandes pompas, é sempre um olhar curioso que observa sua intimidade com a aceitação e a faz reservar uma bela casa, criar protocolos - a porta aberta e fechada, as cartas e evidências -, administrar sua rotina e se arrumar cuidadosamente para o dia em decide finalmente abraçar seu fim. 


Em dado momento, o afeto de Ingrid com a amiga se mistura a uma percepção bergmaniana e é quase como se as duas mulheres começassem uma simbiose que pudesse alterar a escolha de Martha. Mas, seu sorriso de conforto perante o gradual cuidado de sua confidente, é apenas mais um fator que valida seu plano e brinca com a expectativa de quem assiste, a mesma que é a de Ingrid ao procurar a porta vermelha todas as manhãs. Almodóvar não pretende então aproximar essas duas personagens para criar dor em sua separação ou alterar seus destinos, segue firme em sua proposta de que a morte é apenas um evento comum em seus dias e que cada uma tem seu papel individual. Essa naturalidade desconfortável a quem assiste, e a Ingrid, é tão bem humorada que o filme oculta a filha de Martha até os últimos minutos, para revelar sua participação na mesma Tilda Swinton, algo habitual para a atriz, dar vida a vários personagens em um mesmo trabalho. Se há sobriedade em O Quarto ao Lado, também estão todas as marcas autorais de Pedro Almodóvar, mostrando que mesmo que o romantismo poético do espanhol se perca um pouco quando suas personagens falam inglês, seu trabalho como cineasta se tornou tão refinado ao longo dos anos que não precisa sempre de tanto espaço e grandiosidade para construir ideias com a mesma habilidade. Seu universo particular, ao qual somos transportados sempre que um filme seu se inicia, está sempre esperando vibrantemente novas histórias. 


Filme assistido a convite de Warner Bros. Pictures e CDN O Quarto ao Lado chega aos cinemas brasileiros no dia 24 de Outubro


 

Nota da crítica:

3.5/5


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