Tran Anh Hung capta com fascínio o afeto que se comunica pelo ato de cozinhar, transformando cada preparo em um momento ritualístico de um romance clássico
Sobram cenas em O Sabor da Vida em que os diálogos são escassos mas o silêncio mesmo é raro. A grande cozinha se enche de vida, em uma fotografia que puxa os tons quentes da luz do sol, tornando a atmosfera calorosa de forma emotiva, enquanto a câmera dança no ritmo dos personagens que andam de lá para cá com seus utensílios. Pouco é dito, mas o som é abundante, de panelas, pratos, facas cortando, fogo crepitando, água fervendo e as vozes só se escutam quando dizem algo referente ao preparo das comidas, é breve e objetivo, já que cozinhar é um ritual para Eugénie (Juliette Binoche) e Dodin (Benoît Magimel). Essa mise-en-scène clássica e romântica, bastante controlada pelo diretor, constrói uma relação em que a gastronomia se aproxima do cinema, é uma arte, com referências, estudo e grandes mestres, mas que depende de quem está no comando dominar as linguagens para criar resultados mágicos que se relacionem com quem os consome. Dividir esse amor pela comida, do seu cultivo e preparo ao saborear dos pratos, é o que conecta Dodin, o homem rico, e sua cozinheira que faz questão de manter seu posto. Não é algo trivial, muito menos raso, o gourmet exigente encontra nas mãos de Eugénie os diálogos que nunca foi capaz de ter em sua vida, a mulher fala sua língua e o compreende, ambos se entendem pelo sabor das coisas. O contorno desse relacionamento é todo pautado no prazer de cozinhar e comer, demarcado pela vontade da cozinheira de estar nos bastidores, como se aceitar ser a esposa a tirasse sua personalidade e poder de escolha.
Assim, cruzar esses limites exige uma inversão de papéis em que não apenas Dodin se coloca a servir Eugénie, mas fala com ela por meio dos sabores. Dizer “eu te amo” pode ser bastante fácil até mesmo em francês, mas cozinhar um jantar complexo é a forma como esse casal sabe melhor comunicar seus sentimentos. Colocar um anel em um prato de sobremesa é provavelmente o gesto mais banal em um pedido de casamento hoje em dia, mas nos olhares desses dois existe outra mágica a ser acessada nesse momento, das mãos que preparam uma massa difícil e crocante, perfeitamente colocada na posição correta. Não é apenas um prato bonito e gostoso, é algo que os dois conhecem, identificam as dificuldades de preparo, sabem os ingredientes e intenções, é o idioma secreto que Dodin e Eugénie usam todos os dias para partilharem afeto, sem nunca precisarem de um casamento por 20 anos para rotular essa troca. Mas é claro que em um romance clássico de 1800 seria difícil para um homem não ser capaz de conquistar propriamente a mulher que quer, e também é bastante claro que Eugénie se dá por encantada com toda dedicação de Dodin na cozinha para elaborar em ao menos três pratos o quanto a ama, mas é sua proximidade com o fim da vida que a faz aceitar a mudança, ou limitação, de cozinheira a esposa.
As barreiras existentes nos papéis de gênero são sutis, de lugares acessados somente pelos grupos masculinos até a predominância de mulheres que trabalham para servir, o que empresta algum poder a Eugénie é o contorno de alguma teimosia sua de se manter nos bastidores dos banquetes, mas o filme nunca quer realmente discutir essas questões, apenas as compreende como parte de seu tempo. É no comando das panelas e fogões que essa mulher faz seu lugar, controla, tem poder e prestígio, sua profissão, seu ofício e vocação é o que a fazem alguém, o que a simples etiqueta que o matrimônio atesta não seria capaz de fazer, ou até removeria. Sua personalidade e força vem do domínio gastronômico, e mesmo fraca fisicamente, com Juliette Binoche constantemente travando uma sutil batalha de permanecer em pé enquanto a debilitação se mostra por seu rosto e gestos, Eugénie quer se manter com as mãos nos alimentos, se movendo entre as panelas, exercendo seu prazer pela cozinha. É a forma como tudo é retratado que não apenas enche a tela de sabor e aroma, mas engrandece os alimentos, o manuseio se transforma em algo religioso e a beleza de cada etapa é tão romântica quanto a forma como Dodin olha para Eugénie.
Nas primeiras cenas é como se o espectador acompanhasse o ponto de vista da pequena Pauline, fascinada com aquele mundo que vê pela primeira vez, encantada com cada gesto daquele balé culinário, prestando atenção a cada som, totalmente focada e maravilhada. Depois da morte de Eugénie, a cozinha perde um pouco sua vida e cor, é a visão de Dodin que assume a atmosfera, e tudo retorna lentamente enquanto o homem recupera sua paixão pela comida, em busca de passar adiante seu conhecimento e também redescobrir os sabores da vida que seu amor pela cozinheira levou com ela. A observação que sempre parece antecipar seus personagens, se movimentando com seus corpos não de forma livre, mas controlada e dinâmica, busca sempre o próximo encontro, seja do frango com a panela, do vinho com as assadeiras, do molho com o prato, e por fim, da cozinheira que não está mais lá, mas permanece atrelada à memória afetiva de sua verdadeira paixão, a gastronomia.
Nota da crítica:
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