Misturando o Brasil de hoje com um futuro com mais avanços tecnológicos do que humanos, filme de Igor Bastos é gracioso ao discutir formações familiares com abordagem lúdica e didática
Imaginar o futuro por meio da arte, principalmente falando de ficção científica, fica quase sempre a cargo dos maiores orçamentos de grandes estúdios. Falando de um senso mais comum e generalizado, as ideias que nos remetem hoje a uma modernidade a qual provavelmente nunca conheceremos em vida estão inseridas na memória por obras que não falam português. Mas, o mundo de amanhã de Placa-Mãe não pensa só nos carros voadores, telas e robôs, compartilha em seu universo um resto da sociedade brasileira atual, seja na natureza, rios, praia, árvores e gramados, como em estruturas, favelas, comunidades, costumes alimentares, trens em trilhos e uma humanidade presa a preconceitos muito ultrapassados. A animação não rejeita as referências que fazem parte desse imaginário coletivo, seu congresso remete ao de Star Wars, seus carros e prédios lembram Blade Runner e por aí podemos pensar diversas obras, mas há uma essência particular que parece não evoluir, quase como se Minas Gerais tivesse abraçado a modernidade que veio de fora mas se recusado a abrir mão de suas tradições, boas ou ruins. Na mente de Nadi há tanto do avanço tecnológico que a permite ver as probabilidades de tudo e fazer leituras rápidas das situações e leis, como as lembranças do folclore brasileiro, da cultura de Divinópolis e até mesmo um conto do judaísmo. Para a androide, é tão importante levar seus filhos conhecerem a maria fumaça quanto lhes ensinar sobre os robôs. É nesse paralelo entre o novo mundo imaginário e as tradições de agora, ou do passado, que Placa-Mãe procura discutir de forma bem didática o conceito de família em um mundo cada vez mais conservador, mostrando a política como porta de entrada para os maiores retrocessos de direitos conquistados.
Utilizando a figura de Nadi, a única androide que vemos nesse filme, a animação coloca em pauta a formação familiar fora do tradicional. A protagonista poderia muito bem ser confundida com uma humana não fossem as tecnologias que a tornam mais forte e inteligente que o comum, bem como a cor de sua pele, como destaca um dos diálogos. Nessa realidade, os robôs parecem ser os cidadãos de segunda classe, mas sem cidadania, são colocados em trabalhos exaustivos e precários, tratados com indiferença pelos humanos e facilmente descartados. Nadi é diferente, lida com um tipo de passabilidade que a aproxima de uma mulher em vestes futuristas, mas sua figura pensante não atravessa um debate acerca da maternidade atrelada ao gênero. São laços afetivos e habilidades intelectuais que a fazem mais que uma mera robô, a capacidade de cuidar, proteger e se importar com o outro a tornam mãe e filha, sem que exista uma profundidade maior nessas questões, importa mais à narrativa se manter nessa linha da construção familiar fora do padrão em embate com um sistema conservador, sem mergulhar no que faz Nadi sentir a necessidade de ser mais humana e como o mundo pode a enxergar dessa forma por consequência. Ela e seu desenvolvimento com as crianças são mais meio do que fim.
O político facilmente identificado pela cor laranja e o jeitão típico das figuras atuais, defende a família e os valores tradicionais, rejeitando os robôs como parte da sociedade. Assim, sexualidade, raça, gênero e classe social se unem em um combo de uma alusão mais simples e didática para retratar esse vilão maniqueista como a ameaça ao progresso. Se Nadi era considerada cidadã e com isso, capaz de constituir família adotando duas crianças rejeitadas pela sociedade, Asafe se coloca como oposição automática a isso, defendendo que apenas humanos podem ser pais e mães. Mesmo que os cenários e as metáforas usem o futuro de ficção científica, os temas gritam um Brasil em conflito com sua política atual, tomada pelo conservadorismo religioso que avança nas tentativas de retirar direitos. Placa-Mãe opera no simples discurso de que alguns atacam o que é diferente, falando de forma bem lúdica com um público que ainda não pode votar, mas já sofre as consequências do país que vamos deixando. Porém, não é por apostar no simples e didático que seu resultado seja enfraquecido. Aceitar e declarar essa praticidade mais inocente e inofensiva permite que as relações entre David, Lina e Nadi, bem como com seu criador Theon, estimulem exatamente aquilo que não evoluiu na Minas Gerais futurística que o filme retrata, a humanidade.
Apesar do otimismo típico em trabalhos desse tipo, o longa de Igor Bastos enxerga barreiras ainda sem solução na sociedade brasileira, e Nadi e sua família precisam aprender a viver e serem felizes apesar dos direitos ceifados, assim como Asafe e seu terno laranja garantem o poder contra todas as expectativas de final feliz. Nada mais brasileiro do que encontrar pontos positivos enquanto o mundo está ruindo. Placa-Mãe compreende que o futuro depende de entender o passado, construir o amanhã começa hoje e o cinema é, e sempre foi, ferramenta fundamental para esse processo. Tanto de registro quanto de debate, por mais infantil e simples que possa parecer. Então, entre o sotaque mineiro cativante e essa mistura de presente de tradições e memória, com problemas sociais e políticos, inseridos em um futuro que molda as referências à nossa realidade, Placa-Mãe conquista na doçura que sua linguagem é capaz de atingir, aproveitando um humor tipicamente falado em português para digerir facilmente e passar adiante a consciência das maiores assombrações que nosso momento carrega.
Placa-Mãe chega aos cinemas brasileiros em 03 de Outubro de 2024
Nota da crítica:
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