Sofia Coppola entrega um retrato agridoce sobre opressão e controle, mantendo a doçura de sua protagonista equilibrada no horror dessa relação obscura
Para quem acompanhou os maiores lançamentos de 2023, a cena de abertura de Priscilla pode lembrar os momentos iniciais de Barbie, nos detalhes de cada processo necessário para que a menina se torne uma boneca. Não apenas nos cílios, maquiagem, sapatos e roupas, mas é a forma como o rosto angelical de Cailee Spaeny aparece em suas primeiras cenas, retratando a Priscilla de 14 anos, e como a luz projeta em sua pele uma juventude quase plástica, não pela artificialidade, mas por ser intocada, doce e inocente. Esse recurso utilizado por Coppola não apenas indica a idade e maturidade de sua personagem, mas também se amarra a uma proposta maior, construir essa manipulação de Elvis (Jacob Elordi), que usa a garota como um objeto, a moldando de acordo com suas necessidades e gostos. A artificialidade é muito bem utilizada pela diretora para indicar esse mundo opressivo totalmente maquiado, seja por interesses ou por ilusões juvenis. Por exemplo, o início do filme pode remeter a um conto de fadas, a adolescente que é notada por um homem bonito, interessante e que, por acaso, também é o maior astro da música no momento. Mas ainda que exista esse tom fantástico do imaginário feminino adolescente, a obscuridade é sempre presente, Sofia Coppola parece ter total controle de seus espaços, luzes, posicionamentos e até do tom de voz de seus personagens, para criar uma lembrança de uma Priscilla iludida por um príncipe encantado, e são os detalhes que ajudam a criar as conclusões assustadoras sobre o comportamento desse homem com uma menina, um controle que começa sutil para depois ser intensificado, nas pílulas dadas discretamente, na forma como fala com ela, no conduzir de suas atitudes. Priscilla é acima de tudo um filme sobre controle, doloroso, de embrulhar o estômago, mas que nunca deixa sua protagonista ser puramente torturada, mantém carinho e gentileza com ela e se preocupa unicamente com seu ponto de vista.
Coppola talvez tenha feito um de seus melhores trabalhos de direção aqui, arquitetando como cada elemento representa a história que precisa contar. A começar pela altura do casal principal, aqui exagerada para ressaltar a opressão, com um homem de quase 2 metros de altura que faz a pequena Cailee parecer ainda mais uma boneca. A princípio esse contraste é menos enfatizado, colocando os dois sentados na maioria das cenas em que a menina começa a conhecer o artista, porém, ao chegar em Graceland as cenas em que ambos estão de pé, lado a lado, são constantes, inclusive no primeiro encontro deles na mansão, em que Elvis a pega e a levanta no ar como se fosse uma criança. A diferença de idade nunca precisa ser pontuada didaticamente em números, ela é óbvia, mesmo assim, os homens que fazem parte da narrativa nunca parecem se incomodar ou notar a problemática dessa relação. Já as mulheres, e meninas, ou tratam Priscilla como uma garota de sua idade, demonstrando que compreendem sua fase da vida, ou são ouvidas cochichando o quão nova ela é e como ela representa uma diversão para Elvis. Essa diferença na forma em que homens e mulheres são usados no longa também fortalece a opressão em dados momentos, ou serve para pontuar como a diferença de gênero é fundamental nessas lembranças. Assim, o grupinho masculino que cerca Elvis não tem nomes nem personalidades, servem como uma representação da mediocridade, sempre se comunicando por sons em uníssono, quase sem proferir palavras completas, como cheerleaders. Mas, eles também servem na opressão, sempre ao lado do cantor enquanto ele exibe sua boneca para todos, os homens preenchem salas e observam Priscilla ser controlada e montada por esse astro egocêntrico, em espaços perfeitamente organizados e limpos, onde ela é geralmente a única mulher.
Os cenários funcionam também nessa lógica do controle. Priscilla é vista apequenada em Graceland, enjaulada nessa mansão sufocantemente decorada. Tudo perfeitamente posicionado, entediantemente inútil, já que a jovem é obrigada a não fazer nada além de estudar e ficar bonita esperando as ligações do amado. Mesmo que a cor seja mais vibrante no momento em que ela sai da Alemanha para viver esse sonho, é apenas seu ponto de vista cheio de uma mágica falsa, apenas imaginada pela embalagem apresentada. O conto de fadas se torna aos poucos um pesadelo, embora o tom obscuro nunca tenha deixado de existir, a figura de Elvis vai se tornando comportamentalmente tão opressiva quanto sua imagem, o homem usa seu poder masculino para controlar o corpo e a mente da menina, tornando óbvio sua escolha de cultivar uma relação com alguém tão nova e tão inocente, por tantos anos. É incrível que Coppola, então, não mostre Elvis como alguém extraordinário, o ponto de vista sempre está com Priscilla e nada acontece em tela sem ela, logo, quase tudo que envolve a mística do astro do rock não importa, apenas seu ego e como ele afeta a protagonista. Quando é visto no palco, por exemplo, é sua figura por trás que observamos, com uma plateia insignificante, quase o ridicularizando, isso porque, Elvis é um homem, e isso bastaria para que ele controlasse uma menina tão jovem, roubando sua vida. O fato de ser um artista famoso pesa, certamente, principalmente no imaginário adolescente de Priscilla, mas ao tornar esse apenas mais um cara comum, rejeitando exibir a grandiosidade de sua carreira com algum destaque, Coppola pontua como a opressão é muito mais uma questão de gênero, agravada pelos recursos que ele possui.
Ainda que seja bastante doloroso, a diretora não exibe uma tortura, é gentil com sua doce protagonista, retratando os esquemas opressivos sem pesar violentamente com a jovem. Existe uma complexidade, já que a própria foi capturada tão cedo e, portanto, carrega esse véu de ilusão em tudo, seguindo à risca cada comando de seu predador, mas Coppola a carrega acolhendo seu amadurecimento natural. É quando Priscilla consegue se livrar da jaula (física e emocional) de Elvis, que sua figura muda, a garota consegue amadurecer e retomar controle de seu corpo. A castração que o artista impõe a ela, controlando seu corpo também sexualmente, por não a tocar nem demonstrar desejo, a transforma em um mero objeto de reprodução, assim como a dominação por meio das roupas, cabelo e maquiagem, removem sua personalidade. É assim que seu novo visual próximo ao final do longa se torna tão impactante, representando uma emancipação. Priscilla controla o ponto de vista, mas é submetida às opressões que suas lembranças carregam, de toda uma vida ao lado de um manipulador egocêntrico que nada mais é do que isso. O filme entrega sua libertação não apenas deixando Elvis para trás, mas também entregando o controle para ela mesma pela primeira vez.
Priscilla é agridoce, doloroso, sofrido, mas amável com a menina que foi aprisionada, deixando a opressão e o controle bem marcados em cada pequena escolha. Uma jaula bem maquiada para esconder o enclausuramento, um homem controlador bem produzido para parecer um príncipe, uma vida roubada disfarçada em um conto de fadas. Uma história de uma Priscilla de verdade que reflete estruturas muito reais, aproveitando todos os recursos do cinema para expor como as ilusões e manipulações da imagem podem criar qualquer ideia que quisermos, só depende de quem está no controle.
Nota da crítica:
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