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Crítica - Saltburn (2023)

Exagerado e farsesco, longa de Emerald Fennell é uma sátira de manipulação encantadora, permeada por jogos de poder e desejos de muitas faces


Crítica Saltburn Amazon Prime 2023

O letreiro indicando 2006 não é meramente ilustrativo, Saltburn nos joga nessa atmosfera dos anos 2000 com diversas referências, mas principalmente por sua trilha sonora, para embarcar em uma história quase de princesas e castelos, em que Oliver (Barry Keoghan) é o pobre menino deslocado encantado, ou obcecado, pelo príncipe local Felix (Jacob Elordi). Fennell abraça o exagero e usa e abusa de uma fotografia que valoriza as cores e elementos desse mundo fantástico. O estilo e a beleza de seu trabalho anterior encontram ainda mais força e espaço aqui. Assim como seus personagens, Saltburn tem muitas faces, iniciando com uma narrativa que muda, se transforma de acordo com os objetivos da diretora de manipular nossa percepção. O tímido Oliver se apresenta minúsculo, fechado dentro de sua concha, saindo gradualmente para ver o sol deste mundo brilhante cheio de pessoas poderosas, pelas mãos de Felix. Aos poucos, o protagonista vai crescendo, ganhando espaço na tela, nos ambientes, enquanto somos tão enganados quanto os personagens que o cercam. A primeira parte serve quase como uma introdução em que não temos acesso a nenhuma percepção diferente, deixando as facetas mais sombrias de Oliver bem escondidas. Ao chegar no palacete de verão, adentramos uma sátira de classe que se concentra na nobreza britânica e todo seu show de aparências e hipocrisias e, assim, a obra começa a jogar mais com as faces de Oliver, flertando com o thriller erótico dos anos 2000 mas usando o sexo como forma de poder, de subjugar e dominar, em que o desejo é material e não pelos corpos. O prazer está na conquista de territórios, no orquestrar das mentes, e a sensualidade serve apenas como isca. 


É divertido como a diretora brinca com estilos e gêneros, sempre muito bem apoiada por uma fotografia belíssima. Tudo que é bonito é valorizado por sua câmera, dos figurinos aos personagens, Elspeth (Rosamund Pike) é quase uma aparição com seus vestidos, preenchendo a tela aos poucos com sua elegância misturada à ingenuidade, Felix tem a pele sempre muito bem contornada pela luz, ressaltando o rosto encantador do príncipe de conto de fadas com o corpo que incita o desejo de toda corte. Assim, até o estranho Oliver ganha beleza aos poucos, essa característica de certa forma contagiante nesse lugar onde o que é feio não tem lugar. Até a rápida aparição de Carey Mulligan é marcada pelo estilo, em uma caracterização que a torna quase um objeto de decoração para essas pessoas. Na verdade, a pequena família nobre usa todos que conhecem como brinquedos, enfeites de sua vida opulenta. Fennell bate bastante nesse ponto do que é bonito mas não tem conteúdo, criando pessoas bastante vazias e superficiais mas sempre lindíssimas, cercadas de riquezas brilhantes. Esses adereços humanos desprivilegiados levados a viverem no palácio pelo tempo que for divertido, servem como distrações, em busca de algum conteúdo mais profundo que faça os Catton esquecerem suas próprias vidas sem graça. Aos poucos, as faces de Oliver vão se abrindo, enquanto as cenas começam a ganhar reflexos. Apesar dos muitos espelhos, Saltburn é mesmo um caleidoscópio, entregando diversas formas de enxergar o mesmo objeto em um efeito especial bonito, mas que na verdade só tem uma imagem central e o restante são ilusões. 


Existe, portanto, essa manipulação tanto dentro quanto fora da tela. Oliver pode parecer apenas um menino excluído que mentiu para fazer parte do núcleo popular e acabou dominado pela sede de poder, por uma paixão até, mas o grande show é acima de tudo para nós, em uma teia mais elaborada. O personagem que o farsante cria serve a seu plano, mas o maior objetivo é sempre despistar suas reais intenções do espectador. O longa nos torna, para tanto, cúmplices de uma coisa ou outra para que seja possível confiar no que vemos de Oliver, ao observar suas manipulações com Venetia ou Farleigh, a pesquisa dentro da mansão para conquistar os pais de Felix, ou até mesmo quando mistura desejo e repulsa expondo mais da mente desse garoto, é estabelecida uma intimidade com suas motivações que não é real, é apenas um reflexo colorido de algo muito maior e melhor planejado. Então Fennell brinca, revela uma mentira ou outra, vai abrindo as muitas imagens desse jovem, e seria um deleite não fosse sua ânsia por explicar o todo, até os pontos mais óbvios, do que nos foi ocultado, mas era claro no desenvolvimento e na proposta de seu filme. Ocorre que seus personagens e histórias são bastante interessantes nessa nuance levemente misteriosa, todo esse jogo de poder e a forma como o longa funciona vai muito bem sem a necessidade de alguma revelação, é perfeitamente possível desvendar o que está acontecendo e fica um tanto caído quando tudo é escancarado ponto a ponto, didaticamente. A beleza do caleidoscópio está em ver a imagem real misturada aos reflexos ilusórios, e nunca é tão interessante remover o dispositivo dos olhos para enxergar o mundo sem sua lente. 


Apesar dos closes muito próximos, que se enfiam nessas pessoas simples e esvaziadas, não há interesse em desenvolver uma relação verdadeiramente íntima com elas, só interessa em Saltburn a dinâmica de poder que ocorre entre elas, suprimindo tudo que ocorre no meio, seus sonhos, pensamentos, ideais, o que realmente se passa dentro dos personagens é descartável, só importa quem está manipulando quem, quem está por cima. E é muito gostoso, muito divertido, até mesmo quando brinca com uma estética de horror e todos seus flertes com o thriller que nunca se concretizam propriamente, não deixa o exagero do humor nem da cor se perderem. Os peões da realeza caem um a um nas mãos desse Oliver que cresce visualmente, vai tomando mais espaço na tela, para só ser apequenado novamente pela grandeza de seu maior objeto de desejo. Mesmo com seu deslize explicativo demais, Saltburn é um refresco, com muita nostalgia dos anos 2000 e um protagonista que poderia vender qualquer coisa, eu compraria, e certamente muitos de vocês também. 


Filme assistido a convite da Primeiro Plano Assessoria e Amazon Studios

Saltburn chega no Amazon Prime Video em 22 de Dezembro


 

Nota da crítica:

4/5



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