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Crítica - Guerra Civil (2024)

Alex Garland se agarra à tensão e remove qualquer reflexão do contexto ao redor de seus personagens, tudo que realmente importa é o registro


Guerra Civil Crítica

Vindo de seu pior trabalho, Alex Garland explorou em Men puramente a simbologia e o psicológico para dizer algo. Essa dinâmica ficou para trás lá em 2022 e agora, ao que tudo indica, o que parece mais caro ao diretor não é criar significados profundos, tudo que importa está na imagem, no ato de registrar, na tensão do agora, no desespero do instante, e no clique do momento certo. Talvez o maior problema que o espectador pode enfrentar em Guerra Civil é justamente ir contra isso e tentar compreender essa guerra, o que existe na dualidade dos lados que se enfrentam, o que causou os conflitos, quem está certo e quem está errado, qual grupo deve ser apoiado. Veja que na primeira cena em que os jornalistas são colocados em seu campo de trabalho, Joel (Wagner Moura) dirige tranquilamente até o local e Lee (Kirsten Dunst) se prepara lentamente para agir, é só quando os trabalhadores da imprensa estão lá, preparados e posicionados, que o conflito se inicia e suas lentes começam a agir. A sequência se dá quase como um espetáculo encenado para que aquelas pessoas possam o captar, a guerra não ocorre e portanto é registrada, são as câmeras que existem e por isso, a ação se dá. É inútil então realizar qualquer reflexão acerca da política, o único lado que importa ao filme e, dessa forma o único que deveria importar a quem assiste, é o do grupo de jornalistas. Sem bandeira, sem rótulo, apenas um escrito de “imprensa” em seus carros, roupas, capacetes e coletes, o grupo serve ao propósito do registro e a guerra só existe, ouso dizer, porque precisa ser documentada.


Do clássico A Montanha dos Sete Abutres até o thriller Todos os Homens do Presidente, jornalistas foram retratados como carniceiros e heróis, como pessoas sem alma sedentas por sangue e investigadores ávidos pela verdade, responsáveis por jogar luz e expor os fatos ao mundo de forma digna, quase substituindo o poder judicial, mas também viciados em encontrar a próxima tragédia. O que vemos em Guerra Civil, no entanto, é uma representação que foca principalmente no fotojornalismo e que não busca heroísmo, nem sede de sangue, mas puramente uma vocação que move suas existências. Os personagens aqui, mesmo Joel que não usa a câmera como ferramenta, e sim um bloco de notas - um alívio é que o mundo digital ficou quase totalmente inútil aqui -, se portam quase como espíritos, levados de acordo com a movimentação das pessoas armadas que acompanham, muitas vezes passando pelos cantos e frestas imperceptíveis ao cenário caótico ao seu redor, tudo para captar o momento. Não há uma relação de orgulho, a questão financeira jamais é discutida, nem prêmios ou vantagens, todos estão ali porque é isso que fazem de suas vidas, não há como parar, e a única forma de morrer é fazendo o seu trabalho. Na maioria das vezes, Garland usa Wagner Moura como um alívio nesse sentido, é ele que leva essa vocação para o lado mais divertido da coisa, trabalha pela fissura, cada momento é como uma droga, e realmente, para todos eles é visível o êxtase atingido após uma sequência de registros, mas os mais velhos já parecem quase sem alma, desgastados no processo, apenas levados porque, realmente, não sabem como seguir de outra forma.


A lógica básica de Guerra Civil se aproxima do filme de apocalipse, com um grupo se unindo para atravessar do ponto A ao ponto B, no entanto, o objetivo final parece algo muito distante durante o processo, é sempre o agora que interessa mais. Se o costumeiro nesse tipo de filme, unido ao road movie, é o sobreviver a qualquer custo para se chegar ao outro lado, aqui os personagens veteranos encontram problemas, mas é a novata Jessie (Cailee Spaeny) que apela à tensão da morte constantemente. O foco de Lee e Joel é sempre muito certo, de forma que sua humanidade parece quase perdida, são apenas operadores de suas profissões, fazendo o que precisa ser feito para fotografar ou escrever sobre o momento certo. É o encontro com essa nova dinâmica, da jovem que descobre esse mundo aos poucos, com o velho (Stephen McKinley Henderson) que já se despede dele, que evoca o que restou da alma assombrada de Lee. Mas se tem algo que o filme deixa muito claro, é que se desviar do objetivo do registro é o que faz o espírito quase invisível passando pelas balas, se tornar um humano de carne e osso e ser atingido. A empatia, o ato de salvar o outro, de se importar com alguém, é a sina dos jornalistas. 


Curiosamente, sem a empatia entre o público e o grupo de protagonistas, é quase impossível comprar a tensão visceral que Alex Garland propõe. Guerra Civil convida o espectador a caminhar com esses jornalistas, olhar por suas lentes, se pressionar contra as paredes, desviar das balas e se abaixar. O cenário apocalíptico é tão comum a eles, afinal a guerra já encontra seus momentos finais quando o longa se inicia, que muitas coisas passam por eles como plano de fundo e é da mesma forma que o diretor as apresenta a nós. O mundo pega fogo, mas a trilha sonora remove a barulheira dos conflitos, homens são fuzilados, mas só ouvimos uma música agitada, pois vivemos o mesmo êxtase do grupo que conseguiu realizar seu trabalho e saiu vivo do outro lado, e da mesma forma, quando tudo que importa é o momento desesperador da guerra, os tiros ecoam em nossos ouvidos, a atmosfera nos sufoca junto com eles, o corpo se tensiona e o objetivo se torna claro, tudo que importa é conseguir aquela foto, e aquela citação. 


Garland orquestra entre gêneros e recursos para que, por vezes, a morte seja quase banal, por já ser largamente conhecida, a destruição pareça apenas um cenário qualquer de road movie, os gritos se escondam na música, mas a violência nunca seja omitida pelas lentes. A escolha do que mostrar e como mostrar sempre é um convite a viver ao lado desses jornalistas e encontrar no horror e no suspense a adrenalina final que compreende a busca pelo registro como único motivador possível, nosso e deles. É preciso captar o que acontece e não pensar sobre, e é necessário confiar nos instintos - a mesma lógica narrativa que nos dá a certeza de que o presidente não estaria no carro e serve de gatilho para Lee, é a que nos diz antecipadamente que ela será atingida e, portanto, é hora de pegar a câmera. Assim, a quem adentra e compra o convite de Guerra Civil, o corpo se move como o dos jornalistas, suas motivações atravessam a tela e as mentes se alinham, o registro final se torna tudo e a guerra só aconteceu para que aquele momento pudesse existir. 


 

Nota da crítica:

4,5/5


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