Nem ao céu, muito menos ao inferno, o filme dos irmãos Danny e Michael Philippou ensaia diversos caminhos mas carece de alguma coragem para ir além
Nos últimos anos o termo “terror do ano” parece mais uma assombração para os filmes do que um selo de qualidade. O público se tornou sedento pelas novidades do gênero, sempre criando expectativas altíssimas para certos lançamentos, como os da famosa A24, conhecida pelos filmes que abordam dramas individuais por meio de um horror bem menos frontal. Não deve ser fácil ser o “terror do ano” e em alguns anos eles são vários, mas especificamente em 2023, Fale Comigo parece estar liderando a disputa pelo selo dado pela audiência mesmo antes de assistirem ao longa. A dupla de diretores, os irmãos Australianos Philippou começaram no youtube e agora ganham as telas grandes do mundo todo, um olhar fresco no cinema, poderíamos pensar. E até é o que pode parecer no começo do longa, que vai por um caminho muito interessante, mas que logo se perde em diversas alternativas que os diretores parecem querer explorar, sem se aprofundar em nenhuma delas. É notável a percepção de que o cinema de terror está vivendo uma crise de identidade, a qual os criadores ainda não sabem bem como superar e que afeta diretamente o produto final de Fale Comigo. Vivendo na sombra de filmes como Hereditário (Ari Aster, 2018), o gênero sofre com muitas dificuldades para encontrar um caminho autêntico no cinema mainstream, abandonando muitas vezes a fantasia e o horror frontal, para se esconder nos dramas familiares e traumas individuais. É sintomático dos tempos em que vivemos e da geração que consome e cria os filmes, como lidamos com nossos demônios internos hoje é realmente muito diferente do que nas décadas passadas e o cinema sempre é um reflexo do mundo. É possível perceber a juventude transbordar na obra dos Philippou, e como todo bom adolescente, não saber o que fazer e nem pra onde ir, faz parte.
Por um bom tempo, Fale Comigo abraça essa adolescência de maneira muito interessante e benéfica para o filme. Ainda que o trauma da mulher esteja lá, bem como o drama familiar, toda a brincadeira de falar com os mortos não tem como objetivo se aprofundar nessas questões internas, mas é trabalhado como uma fuga, uma droga na verdade, que Mia (Sophie Wilde) usa para se sentir melhor, mas também é claro, para ser jovem. Se vimos muitos filmes nas décadas passadas em que o horror vinha de uma porta aberta por um tabuleiro ouija usado por crianças ou adolescentes que queriam desafiar seus medos e mostrar coragem, os jovens australianos do novo “terror do ano” atualizam o clássico para algo extremamente contemporâneo. A brincadeira agora é filmada por diversos celulares, com vídeos postados nas redes sociais e as rodinhas usando a mão que permite falar com os mortos quase como um baseado. Há uma sequência muito boa, inclusive, que adentra bem essa geração e esse escapismo, talvez uma das últimas boas do filme, em que todos ficam praticamente chapados com esse poder e a midiatização dos acontecimentos, usando bem a montagem, a trilha sonora, e uma câmera que flui nesse frescor jovem de brincar com o perigo sem fazer a menor questão de trazer algum tom de responsabilização ou consequência de seus atos. Existe liberdade nessas cenas e violência ao final delas, que nos lembra da sombra de Ari Aster ao ver uma cabeça se partindo na madeira, mas com um início de uma voz própria que infelizmente vai se perder no restante da duração.
Não é apenas triste que o filme mude de rota tantas vezes, como se torna entediante em muitos momentos. Sempre que quer focar no trauma, a obra desacelera para deixar o drama se destacar, ganhar o palco, se preocupando demais com momentos desinteressantes após construir um caminho muito mais intrigante. Outro ponto fraco é individualizar a experiência em Mia, mostrando apenas seu ponto de vista desse mundo dos espíritos, mas sem nunca realmente cruzar para o lado de lá. É como se faltasse coragem para encarar de frente o inferno e por essas e outras, a narrativa vai e volta e fica sem objetivo. Depois que o horror adolescente que brinca com espíritos e flerta com a morte é abandonado para ficar “mais sério” vamos do drama do luto de Mia às questões familiares, passando por uma breve investigação também típica dos filmes de terror e lapsos que quase entram na parte mais assustadora desse mundo, mas ficam só na porta. Tudo é abordado na superficialidade, falta criatividade para abandonar as referências, falta coragem para olhar de frente para o terror, falta fôlego para saber onde se quer chegar com esse filme.
Me perguntei se as questões psicológicas vendiam melhor, por isso estariam tão deslocadas aqui, quase como um acessório desnecessário mas que foi obrigatoriamente incluído, ou se são apenas uma necessidade atual, de um cinema de horror que vê esse caminho como o mais provável agora, onde mais se enxergam. É que é possível ver ideias boas em Fale Comigo, mas é um filme que parece muito preso, e que se perde por não conseguir mergulhar, ou talvez confiar, em algumas delas. Reflito sempre o quão melhor é se arriscar e criar algo terrivelmente ruim, do que tentar jogar por caminhos seguros para ser aceito. Infelizmente, aqui temos um exemplo que seja por falta de criatividade ou por não correr riscos, fica num purgatório do cinema, mediano, mas certamente bem recebido por muitos - percebi como a audiência está desacostumada com certos cinemas de horror quando vi tantos chocados ao ver a representação de um espírito na pré-estreia. Às vezes é melhor errar feio e ser lembrado, do que ficar na porta do inferno sem nunca olhar o que tem dentro.
Filme assistido a convite da Diamond Films Brasil
Fale Comigo chega aos cinemas em 17 de Agosto.
Nota da crítica:
Comments