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Fogo Fátuo (2023) | Entre a tradição e os delírios modernos

O sonho lúdico de João Pedro Rodrigues traz para as telas um conto de fadas gay e erótico que exalta os corpos e brinca com o colonialismo português



Adentrar esse universo de Fogo Fátuo, ainda em sua introdução, pode parecer com as obras infantis de alguns (ou muitos) anos atrás. Os contos de príncipes e princesas e seus amores desafiadores, sonhos de viver além do destino marcado pela monarquia e pensamentos que divergem politicamente de seus familiares fizeram parte da infância e adolescência de muitas pessoas, imagino. Mas, João Pedro Rodrigues entrega essa história como uma fantasia erótica que foge do padrão dos contos de fada tradicionais, e que bom que foge. As lembranças do rei de Portugal, em seu leito de morte, se mostram para nós como uma peça teatral, consciente de que há uma platéia os assistindo frente ao palco. O príncipe Alfredo (Mauro Costa), é o exato retrato do estereótipo que representa, loiro, com ar gentil e doce, mas a vontade de fazer seu próprio caminho. A sátira ao colonialismo português se traça nos atos iniciais em que Alfredo bate de frente com a família, com piadinhas políticas e uma ridicularização dessa pequena monarquia. Por si só, a ideia de uma família real ainda existir nos anos 2000 e se portar com compromisso com seus costumes já é ridículo o suficiente, mas o diretor ainda reforça essa ironia e talvez, soe um tanto forçado, com algumas frases prontas bem marcadas, mas acaba se fundindo até que bem com a proposta geral de tudo ser uma encenação cômica, fantasiosa e exagerada. Ainda assim, o filme parece realmente começar a brilhar quando Alfredo vai ao corpo de bombeiros.


Quando se desprende da família, a mise-en-scène do longa se torna mais livre. Mesmo que o primeiro número musical seja bem contagiante e as cenas anteriores tenham seus pontos positivos no humor, quando Alfredo se une aos bombeiros é que os corpos se libertam e tudo ganha outra atmosfera. Com ares de Bom Trabalho (Claire Denis, 1999), pinceladas renascentistas e um balé fascinante, o tempo que o príncipe passa nessa nova vida é curto em tela, mas cresce muito nas sensações que passa. Ao encontrar o instrutor Afonso (André Cabral), ocorre o choque de diferenças dos dois mundos, de origem, raça, privilégio, identidade e classe, em um romance que transforma o tradicional no conto de fadas que só começou a ser contado muito depois, entre dois homens, sem esconder corpos e desejos. Se vivemos hoje uma onda moralista um tanto estranha, João Pedro Rodrigues vai no sentido contrário - ainda bem - e exibe o tesão em tela, os fluídos e o sexo. A paixão entre Alfredo e Afonso começa a se movimentar numa sequência coreografada que é simplesmente uma das coisas mais bonitas que vi recentemente e o ponto alto do filme. As influências do teatro musical são fortes, a trilha sonora é marcante, como as outras músicas da obra também o são, e a dança é hipnotizante. É realmente como um sonho, uma doce recordação de um antigo amor que já se foi, de tempos jovens que não voltam mais.


Ainda que seja um longa, Fogo Fátuo é breve, como despedidas no leito de morte costumam ser e como a história de amor entre um príncipe e um bombeiro, que acaba quando um deles precisa se tornar rei e seguir seu caminho. Brincando com esses contrastes do tradicional com o moderno, sendo o mais óbvio aqui o jovem que quer salvar as florestas que as políticas que sua própria família defende querem destruir, mas também da monarquia no futuro, o fado e a música eletrônica, a pintura clássica e o falo de plástico, Rodrigues faz uma bela história que não vê amarras para criar, um respiro gostoso no cinema atual, que encanta quem ama uma boa fantasia. É ainda maior quando deixa os sentimentos fluírem entre essa platéia e a movimentação em cena do que quando tenta dizer demais. A realeza se torna decadente, morre, o futuro é a democracia daquele contraste, diferente do estereótipo do príncipe, mas com a lembrança nunca apagada desse amor típico dos livros, que vive numa realidade imaginária, afinal, a melhor arte tende a ser a dos que sabem sonhar.

Nota da crítica:

4/5


Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Vitrine Filmes

Fogo Fátuo chega aos cinemas em 20 de Julho, acompanhado pelo curta brasileiro Fantasma Neon.


 



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