Com filme bonito e dilacerante, Eliza Capai une uma rede de histórias para conseguir contar a sua própria e revelar um sistema que sufoca mulheres
Eliza Capai prefere se colocar atrás das câmeras, como documentarista, foi assim que conheci o trabalho da diretora em Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime, em que apesar de não se inserir, era perceptível sua visão, o que é difícil de sentir em produções como essas, uma série de crime para um grande streaming. Assim, ainda que ela flua de lugar, entre cineasta, entrevistadora e objeto de sua própria obra, Eliza não faz de seu filme um olhar individual sobre sua experiência, mas uma vivência compartilhada que não apenas conta cada relato ali, de casais e mulheres (abrindo o devido espaço também para os parceiros) que passaram pelo mesmo que ela, mas também leva isso a um cenário muito maior, de todo um país sufocando sistematicamente mulheres. Eliza compreende a importância do que viveu para uma imagem mais abrangente, mais do que isso, enxerga seus privilégios e a necessidade de aprender com os diferentes pontos de vista. Reunindo depoimentos de mulheres distintas, de diversas classes sociais, pensamentos, ideologias e origens, ela caminha para uma conclusão em que a escolha de cada mulher depende de seu cenário, de suas condições e experiências, e que cada uma delas deveria ser respeitada e garantida. A partir dessas entrevistadas, a diretora conta sua própria história aos poucos, como quem também é questionada por elas, puxada por suas observações, compelida a compartilhar também. É como se Eliza pegasse na mão dessas mulheres para que fosse mais fácil assim passar para frente o que viveu, eternizando a memória do filho.
É interessante como o filme cresce aos poucos, começando como quase um diário de gravidez na pandemia, que revela todas as angústias que vivemos no Brasil nessa época ainda tão recente. Eliza vai tecendo histórias, tomando coragem como quem entra aos poucos no mar, vai deixando suas entrevistadas falarem, fluírem na frente de sua câmera, acolhe cada acaso, cada criança que age livremente e é captada, cada interrupção é bem-vinda. A documentarista só demonstra algum controle quando percebe uma das mulheres avançando além do que deveria naquele momento, segura, pede para se aprofundar em outro ponto antes. Assim o mergulho é gradual, mas nunca escondendo seu processo, brinca na areia antes de colocar os pés, mas chega no ponto em que não há mais como não entrar de cabeça. Seu filme se torna denso, pesado e obscuro. Eliza dosa muito bem as histórias, em entrevistas bastante comuns, filmadas numa encenação habitual de documentário, com suas próprias filmagens, que mostram ela, seu companheiro na época e seus pequenos registros caseiros. Tudo isso é pincelado com encenações belíssimas que revelam sentimentos impossíveis de serem explicados em palavras, mas poeticamente retratados pelo cinema. É um trabalho de criação intenso, que une essas diferentes abordagens em um resultado que conta experiências distintas para avançar com o próprio desabafo de Eliza e ilustrar os sentimentos de todas essas mulheres, externalizando também o sentir coletivo de ser mulher em um país que proíbe nossas escolhas.
É muito poderoso como a documentarista se abre, expõe seu íntimo o transformando em arte, mas também em pequenas conversas, só deixando sair em palavras. A troca com as entrevistadas é fundamental para esse avançar da narrativa, já que Eliza não coloca uma barreira entre cineasta e personagens, todas estão no mesmo barco e mesmo quando não a vemos, sentimos sua presença, ou a ouvimos, as trocas são constantes e enriquecem o filme. É esse coletivo que se une que nunca deixa o longa ser algo individual e que também escancara o cenário maior, trazendo um sentimento de revolta. A diretora teve a oportunidade de viver outras opções, fora do Brasil, mas é a realidade daqui que ela quer trazer para debate, e assim como o filme vem numa crescente de se aprofundar dolorosamente nas experiências dessas mães, também é gradual a indignação com a legislação e todo o sistema brasileiro. A partir das dores e dificuldades que vemos essas mulheres relatarem, de violências e abusos do sistema, médicos e juízes, Eliza pretende expor como existem diversas escolhas, sejam mais ideológicas ou mais práticas, mas todas que cada mulher toma de acordo com o que é melhor para si, e que não importa qual seja essa escolha, todas elas foram desrespeitadas em alguma etapa, senão em todas.
Em seus momentos de maior fragilidade, todas foram obrigadas a serem ainda mais fortes, algumas com apoio e outras sem, por negligência de seu próprio país. Além de toda dor física e emocional que Incompatível com a Vida coloca belamente em imagens e relatos, existe esse manifesto político muito forte que só é possível por Eliza jamais tornar seu filme algo individual, mas por além de abrir de forma muito honesta e sincera seu íntimo, se esforçar para adentrar o universo de outras mulheres, de tantos pontos de vista diferentes, dando toda importância à singularidade deles. Cada uma parece ter sua própria forma de processar a dor e seguir em frente sem nunca esquecer os filhos que ficaram, para uma é a caixa de roupinhas de bebê, para outras são tatuagens com datas, estrelas ou nomes, para Eliza Capai, é um lindo e potente longa-metragem.
Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Descoloniza Filmes
Incompatível com a Vida chega aos cinemas brasileiros em 16 de Novembro
Nota da crítica:
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