O quarto filme da franquia abraça de vez a fantasia e explora toda a mitologia criada por Chad Stahelski para transformar a figura de Wick
Uma das melhores franquias de ação, John Wick já provou seu potencial com seus três primeiros filmes. O primeiro, que fecha bem sua história, é seguido por dois longas que apresentam e expandem o universo que cerca esses assassinos ao mesmo tempo que mostra um John Wick (Keanu Reeves) mais humano, com questões morais e relações de respeito e amizade. Agora que já conhecemos essa sociedade que vive escondida dentro do mundo “normal”, Stahelski pode finalmente brincar com toda a mitologia criada, transformando Baba Yaga em um filme que abraça completamente a fantasia e que joga com os gêneros no cinema. Entre o faroeste e o cinema asiático, o quarto filme da franquia sabe ser criativo e ir além do que seus capítulos anteriores foram. É como se Wick atravessasse o inferno mesmo, cada vez menos humano, em um mundo que se torna quase sobrenatural. Para isso, temos a trilha sonora mais bem trabalhada entre os 4 filmes e cenas de luta que se superam na forma, sem medo de experimentar e dançar novas coreografias ao redor, e junto, de Reeves. Não é apenas o mais longo, mas também o mais grandioso, que expande cada acerto dos anteriores, atestando que John Wick é uma obra consistente e que sabe exatamente para onde está indo.
Se nos filmes anteriores já vimos o mundo se expandir e passear por outros países, isso fica ainda mais evidente em Baba Yaga. Começando por Osaka, o diretor brinca com referências ao cinema asiático, com as espadas de samurai e o próprio Caine (Donnie Yen), afinal, um bom filme de ação, com boas cenas de luta, deve muito às coreografias desse cinema. A fantasia também já é inserida com mais força aqui, com a adição das lutas com arco e flecha. O próprio faroeste é também referenciado, seja na introdução com uma caçada a cavalo no deserto ou por todo conceito dos duelos. Mas aqui, tudo é ressignificado, trazido para esse mundo para ser usado com suas próprias regras. Stahelski se aproveita de diversas ideias, mas coloca sua marca, a marca de John Wick, e de seu mundo caótico. A arquitetura e a arte também fazem parte de toda essa ambientação ao redor do mundo, como já foi feito na trilogia mas aqui com mais força, os museus, as obras de arte e os monumentos se inserem de forma mais icônica na jornada de Wick. As sequências de luta absurdamente incríveis conversam com todo seu entorno, usando o Arco do Triunfo, as escadarias da Sacré Coeur, a Torre Eiffel e outros pontos não apenas como cenários, mas como partes integrantes de momentos chave do longa.
Ao longo da trilogia fomos conhecendo melhor a figura de Wick como um assassino que também é humano, que poupa quem acredita que deve ser poupado, que cria relações fortes, com afetos, ética e humanidade. Mas, em Baba Yaga, John vai deixando de ser humano. Fisicamente, o protagonista de Reeves começa a se ferir muito menos, se mostra menos frágil, e emocionalmente ele se torna cada vez mais frio, talvez bem mais cansado. Existem poucos lapsos dessa humanidade que são consistentes com o personagem construído até aqui, porém a evolução natural da franquia o leva a um posto quase sobrenatural que conversa com todo o desenvolvimento dessa mitologia. Wick não tem motivos para viver, nem para morrer, ele se torna uma entidade que ameaça a estrutura dessa sociedade secreta cada vez mais e que não tem escapatória para essa guerra, o único caminho é atravessar e sua única paz seria a morte. Fica claro que existem hierarquias intocáveis nesse universo e que os homens e mulheres que lutam são apenas pessoas obrigadas, presas a uma estrutura, da mesma forma que John está. Não importa quantos mate, a roda continuará girando. Dessa forma, tudo na jornada dele remete a uma travessia pelo inferno - com muitas lembranças de outro John marcante de Reeves, Constantine - com acordos com o demônio e lacaios cada vez mais caricatos empenhados para impedir o fantasma de chegar aos chefões.
As relações entre assassinos, sempre importantes na franquia, se aprofundam aqui. Tudo que conhecemos dessas amizades vem de um passado de Wick que gerou um respeito por sua figura. Em Baba Yaga esses reencontros continuam, mas novos personagens são inseridos, criando novas relações de respeito e novas histórias de vingança. Stahelski é tão apaixonado por seu universo que abre novas possibilidades para continuar o expandindo com ou sem Wick, já que ele se torna muito mais uma entidade e as pessoas novas ao seu redor ganham mais atenção e complexidade em seus arcos. No fim, tudo acontece por e para ele, mas as personalidades apresentadas podem muito bem serem exploradas paralelamente e carregam potencial para isso. Da mesma forma, esse mundo é detalhado em suas regras e burocracias, mostrando ainda mais seu interior e abrindo diversas possibilidades para trabalhar dentro dele no futuro.
Para segurar um filme de ação longo como esse e que já explorou tantos artifícios, parecia desafiador imaginar como o diretor superaria suas cenas de luta, mas a criatividade de Stahelski torna tudo um deleite visual. Explorando cenas coreografadas com carros e motos, ambientes próprios das cidades, novas armas e formas de filmar essas lutas, cada sequência parece ainda melhor que a anterior. Ao mesmo tempo que a tensão fica mais forte com um Wick que parece muito mais forte, mas também com inimigos mais absurdos, é quase cômico em alguns momentos, num ótimo sentido, já que o diretor parece se divertir muito com suas experimentações. Atravessamos o inferno com John Wick, nos cansamos a cada etapa, vibramos a cada inimigo derrubado, criamos empatia com seus aliados. A câmera é fascinada por tudo, misteriosa com os detalhes obscuros dessa sociedade, aberta quando quer nos mostrar cada detalhe da dança mortal de Wick, dramática nas emoções que ainda existem ao redor desse fantasma. Entre uma trilha sonora eletrônica que marca o ritmo frenético, a relação entre céu e inferno dos símbolos e o laço impossível de ser quebrado com essa sociedade que vive enfiada em nosso mundo, John Wick 4 mostra que foi competente ao estabelecer sua própria mitologia e agora pode se divertir com tudo que criou.
Se Stahelski estabelece Wick realmente como um fantasma, o Baba Yaga, no quarto filme da franquia, é porque não há saída desse universo em vida. Mas algo me diz que dificilmente essa foi a última vez que ouvimos falar do maior assassino que já existiu.
Nota da crítica:
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