Paula Gaitán nos convida a navegar com sua câmera pelas águas das américas, investigando uma busca da humanidade por suas origens por meio da natureza

Há uma sensação latente dentro de algumas pessoas, e eu me incluo especialmente aqui, de se conectar com a natureza, como um retorno, uma busca por se reencontrar em suas origens, como se estar na terra, na água ou nas vegetações fosse nossa primeira existência, nossa verdadeira casa. O distanciamento provocado pelas cidades transformou a humanidade, e essa distância, como em dado momento é dito pela narração do filme, se dá pelos artifícios da civilização, que tornam as pessoas infelizes. Esse sentimento é muito presente quando vemos um homem, de origem indígena, em uma cidade fria e cinza, buscar as águas e logo após retornar às suas origens, reaprendendo os costumes de seu povo. Mas, esse é apenas um dos pontos que começam a tentar explicar a complexidade e profundidade que Luz Nos Trópicos carrega, um longa que em mais de quatro horas parece buscar um laço invisível que a humanidade tem com a terra e transformá-lo em imagens que evocam emoções e questionamentos que já nascem com cada pessoa, mas talvez estejam adormecidos. A experimentação visual que Gaitán propõe cria uma atmosfera única que não olha somente para as selvas, de pedra ou de mato, em que seus personagens estão inseridos, mas que provoca um olhar interno que reflete a jornada de sua própria criadora.
A luz, que já está no título da obra, é por vezes natural em total comunhão com a natureza e em outros momentos faz questão de se mostrar artificial, assim como todo aparato cinematográfico se faz tão presente em algumas cenas e em outras se esconde numa observação silenciosa. Tudo flui, como um rio, a narrativa não se amarra a nada, o tempo é uma mudança constante que pode estar em qualquer época, por vezes a linguagem é documental e em muitas ficcional, assim como o filme muda de câmera, para celular e imagens de super 8. Esses tantos recursos são perfeitamente dominados por Gaitán para entregar sua visão de formal sensorial, em uma odisseia que pede uma entrega espiritual de seu espectador.

Com tantos elementos e diferentes momentos no longa, é possível até pensar em uma divisão, se for necessário. A primeira parte se dedica a acompanhar os colonizadores europeus, e faz questão de não se prender a uma única nacionalidade, afinal, estamos falando aqui de uma perspectiva da América como um todo, então o que pode parecer um grupo de portugueses no Brasil se transforma à medida que os idiomas se misturam, português, francês e espanhol, esses povos que vieram para o nosso continente em busca principalmente de dominação de territórios, mas talvez, também nessa mesma procura pelas raízes da terra que originou toda a humanidade. E assim como toda expedição que se enfia nos lugares mais desconhecidos onde apenas os povos indígenas sabem desbravar, aos poucos os europeus vão se cansando, se perdendo e perdendo também a sanidade, se misturando à natureza, com esse lado mais obscuro lindamente retratado por Gaitán. Uma das coisas mais fascinantes da natureza é como ela é sempre essa dualidade de beleza majestosa com uma mística amedrontadora, o que se faz muito presente no longa enquanto a câmera navega pelas águas, adentra as vegetações ou observa os animais que ali vivem, mostrando além do que se vê, uma sensação sombria. O medo faz parte da natureza humana, e assim, Luz Nos Trópicos também é, em dados momentos, um filme de horror.
Essa expedição dos colonizadores parte para outro momento em que a selva das grandes cidades se torna o foco, mas a diretora sempre relaciona a natureza com o cenário urbano, essa ligação quase imaginária é sempre construída por ela visualmente pela relação que a câmera cria em suas movimentações e pela água, o fio condutor que une as américas. Na cidade gelada, o europeu permanece como observador, o homem de origem indígena se une a outras pessoas em sua própria expedição e uma mulher tenta criar algo a partir do barro (argila). O longa cria também um diálogo sobre divindades, a criação da terra e da humanidade por uma perspectiva de crenças, algo indissociável, a meu ver, quando pensamos e refletimos sobre nossa existência e a da natureza, o que a diretora parece também pensar, lidando organicamente com todas essas questões, sem regras ou julgamentos. É necessário sentir, não compreender friamente.

Ainda que nada seja, ou precise ser, linear, existe uma lógica que Gaitán parece traçar de uma criação do mundo até os tempos mais atuais. Na selva de pedra observamos as diversas identidades que se misturam nas pessoas, e os fantasmas que vivem às margens dos rios se tornam as almas que vagam pelas calçadas. É como se a criadora dessa obra montasse um mundo perto do fim, que se afasta cada dia mais da essência que o originou, tornando essa uma investigação por ancestralidade e por tudo aquilo que construiu um continente numa necessidade latente de se reconectar e encontrar uma identidade. Se pensarmos nas diversas origens da própria Gaitán, isso talvez se torne mais claro, mas não somos todos nós uma mistura de diversas fontes?
É difícil falar sobre algo que parece que só nasce realmente dentro de quem assiste e fala diretamente com nosso espírito, usando o idioma do cinema, mas os momentos em que a tela se escurece ao final e ouvimos os sons da natureza soam como uma mensagem direta para tudo que há de mais primitivo em cada pessoa. A chamada civilização afasta seus habitantes de uma conexão mais profunda com o mundo, mas esse laço vive e pode sempre ser resgatado, Paula Gaitán certamente fará muitas pessoas sentirem ele acordando dentro do peito ao assistirem seu belíssimo filme.
Nota da crítica:
4,5/5
Filme assistido a convite da Genco Assessoria e Descoloniza Filmes
Luz Nos Trópicos chega aos cinemas em 21 de Julho no IMS - Paulista e depois seguirá em turnê por diferentes cidades brasileiras, com sessões especiais que contarão com a presença da diretora
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