top of page
Foto do escritorRaissa Ferreira

Mato Seco em Chamas (2022) | O faroeste das favelas do DF

Adirley Queirós e Joana Pimenta criam uma obra imersiva que olha com atenção para as pessoas que formam a periferia e digere os traumas recentes do país



Logo de cara dá para perceber que Mato Seco em Chamas não tem pressa para contar suas histórias. Os planos alongados, ao contrário de afastarem e dissolverem a atenção, nos puxam para dentro da obra, levando seu tempo para olhar para cada questão levantada e ouvir o que cada um tem a dizer. Trabalhando com atores não profissionais e misturando uma ficção de faroeste moderno na periferia com uma abordagem documental, o filme lembra um tanto a forma de Affonso Uchôa de olhar para essas pessoas, também de Coutinho pelo interesse em suas histórias, e dialoga com outras obras recentes do Brasil que retratam os mais estigmatizados, pela sociedade e pelo próprio cinema nacional, de forma atenta e humana, mostrando a vida que existe dentro da favela, suas histórias e suas almas, sem julgar, sem vitimizar, nem glamourizar. É um filme que definitivamente sabe como fazer seus comentários sociais sem cair na banalidade de argumentos vazios, tem tanta profundidade quanto seus planos que mostram a imensidão de um lugar abandonado e árido.


É magnética a forma que o longa nos atrai lentamente. Revela-se aos poucos, mostrando uma complexidade em suas ideias em que nada que vem a seguir é óbvio ou esperado mas ainda assim, tudo é familiar. Nos últimos tempos é comum que o cinema brasileiro esteja lidando com nossos traumas mais recentes na política, o que gera uma pluralidade de ideias, com filmes vindos das mais diferentes origens e realidades que foram afetadas das formas mais distintas pela ascensão de uma direita radical e a perda constante de direitos sociais. Nessa onda, encontramos na obra de Adirley Queirós e Joana Pimenta um dos melhores retratos atuais não só das dores recentes, mas também de uma desigualdade antiga, quase permanente em nossa sociedade. Dando o espaço para que esses personagens possam desenvolver toda sua humanidade diante das câmeras, o filme nos aproxima de forma honesta deles e suas realidades. Destaco aqui Léa Alves da Silva, que entrega uma personagem fantástica, impossível de não simpatizar e se atrair para sua história.



Mato Seco em Chamas tem uma estética obscura, quente e seca em grande parte do tempo, criando uma mística ao redor das mulheres que lideram essa área clandestina, mas também como quem diz que algo de terrível está na atmosfera do Distrito Federal. O retrato da vitória do - felizmente ex - presidente é uma das melhores observações sobre aqueles que o elegeram, as pessoas reais que celebraram sua vitória em contraste à favela que fica longe, no silêncio, onde os poderosos não enxergam e banhada pela escuridão. Aos policiais a atenção dada é mínima, virando o jogo de um cinema que algumas vezes fez esse jogo inverso. Aqui a polícia tem pessoas rasas, sem personalidade. O gesto nazista ensinado parece que precisa de muitas repetições até todos entenderem, depreciando essas personalidades e os mantendo completamente afastados de nós, afinal, não são eles que interessam.


Ao mesmo tempo, tudo que ronda as outras mulheres é extremamente interessante. Os planos que duram minutos as olhando e escutando constroem pessoas complexas, ainda que o ritmo seja lento, a vontade é de se demorar ainda mais nesse mundo e conhecer tudo sobre ele. Não porque a vida de batalha dessas mulheres pareça atraente ou desejável, mas justamente por serem expostas como humanas, com suas vidas sendo um reflexo de problemas muito maiores, uma empatia criada livre de julgamentos, algo que o eterno Coutinho sempre soube fazer tão bem. Ao ponto que a narrativa revela a quebra na ficção, principalmente sobre Léa, já estamos completamente ligados à ela e a Chitara. É uma aproximação que vem também de uma identificação, seja pelo idioma, gírias, formas de falar ou por origens, pela trilha sonora de ritmos que já tanto conhecemos e uma infinidade de signos que só quem é brasileiro entende bem. Muito disso pode vir do texto bem direto e honesto do filme, que não dá voltas para dizer nada, flui bem e é natural.


A favela de Sol Nascente se torna aqui um mundo à parte, quase descolado do que fica ao longe, no coração da política do país. Ainda que seja aprisionada pelas decisões dos homens do lado de lá, a comunidade parece ter suas próprias regras. Assim, Mato Seco em Chamas é quase uma lenda, das pessoas que lutam para ter alguma liberdade e precisam criar sua própria sorte nesse mundo seco e desigual.


Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Vitrine Filmes

Mato Seco em Chamas chega aos cinemas em 23 de Fevereiro.


Nota da crítica:

4,5/5





Comments


bottom of page