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Medusa (2023) | As máscaras do conservadorismo

Anita Rocha da Silveira cria um horror cômico sobre as muitas faces de uma sociedade conservadora, cheia de vaidades e hipocrisias



Era 2021, domingo a noite na Mostra de São Paulo e o elenco de Medusa apresentava seu filme para pessoas usando máscaras e espaçadas na sala do CineSesc. Não esqueço a alegria de estar novamente frequentando os cinemas, em tempos tão sombrios para o país, com a chance de prestigiar a exibição de uma obra como essa. Não poderia ser mais atual, a ascensão de um conservadorismo extremista refletida em um longa que faz uma caricatura dos egos que se levantam pela religião e manipulam tantas pessoas. Os valores que movem a pequena comunidade do longa servem como máscaras que escondem vaidades, desejos e podridões de homens frágeis e mulheres amordaçadas. Melissa (Bruna Linzmeyer) é a entidade que incita a liberdade nas mulheres, uma figura mitológica. Closes nos rostos, máscaras, maquiagens e cores neon montam essa sociedade de aparências onde a lei é nunca mostrar a própria face e impor a todos que façam o mesmo, castigando qualquer pessoa que não se adequar. Ainda que o tempo tenha resolvido alguns problemas que enfrentamos na época do lançamento de Medusa, permanece extremamente real essa crescente de valores conservadores que resulta em discursos de ódio sobre mulheres. E se as mulheres são esse monstro mesmo, Anita faz questão de abraçar a monstruosidade como libertação.


Mari (Mari Oliveira) tem uma trajetória a respeito de sua vaidade ao longo do filme que se torna uma jornada de descobrimento, terminando em libertação. De início sua aparência é a coisa mais importante, como de todas as amigas que a cerca. O cabelo sempre alisado, o cuidado com a pele desde a manhã e a maquiagem bem feita são mais destacados que sua personalidade, tudo, é claro, artificial. A partir do momento que seu rosto é machucado, retirando sua ideia de beleza quase como um castigo - como Medusa e como Melissa também foram punidas - a aparência vai sendo colocada de lado, enquanto a influência de Melissa faz Mari questionar seus valores. A predominância das luzes verdes paira sobre a jovem ao mesmo tempo que seu cabelo vai se tornando mais natural e solto, a maquiagem vai ficando de lado e os cortes em sua máscara de pele vão aumentando, sobrando espaço para Mari crescer internamente. O mesmo acontece com Michele (Lara Tremouroux) que é a caricatura mais divertida do longa e também se esconde nos mesmos artifícios até se cansar das opressões que a limitam. É quase como se a influência da entidade da mulher que era livre, Melissa, exercesse uma força sobre as mulheres, que resulta num grito coletivo de desespero. Um grito que parece entalado há séculos. De pessoas oprimidas por seus meios, que reproduzem discursos e tem as mentes presas a eles, de hipocrisias e exaustões.



A religião evangélica é retratada aqui claramente inspirada nos núcleos mais preconceituosos e manipuladores que existem, mas também, mostra um acolhimento típico das igrejas. Mari é uma jovem que trabalhou e estudou muito, sem grandes condições financeiras, portanto tudo relacionado à sua fé é também um entorno familiar, do lar que vive até suas amigas mais próximas, são todas pessoas que frequentam os mesmos cultos, partilham dos mesmos valores e também são sua base e referência. Da mesma forma, a novata Clarissa (Bruna G), é acolhida pelas preciosas e pelo mesmo lar onde Mari vive. Existe uma sedução pela beleza e aparência do estilo de vida das jovens do grupo (destacadas no palco, com luzes atraentes) e também um desejo de pertencimento, de fazer parte de algo. Assim, essa igreja é uma comunidade que abriga pessoas como uma família, mas os egos individuais de cada um, pastores e crentes, condicionam esse acolhimento aos seus padrões morais. Cada pessoa deve se encaixar naquilo que é pregado para fazer parte e ser aceito, é ironicamente individualista enquanto se esconde em uma ideia de coletivo. Fora dessa realidade estão, por exemplo, as pessoas que trabalham no hospital, que de certa forma aceitam as diferenças, se expressam livremente e demonstram compaixão e outros sentimentos de forma genuína, tudo representado pelos corpos, toques, sexualidade e movimentos.


O texto de Medusa é interessante porque não é raso em seus comentários, mesmo quando se assemelha a algo tirado de uma rede social - como muitos filmes recentes que tentam fazer comentários sociais e acabam parecendo uma esquete de humor - nem é rebuscado ou sutil. Pelo contrário, ele se vale das mesmas banalidades e absurdos que vemos tanto serem reproduzidos na internet, mas não se leva a sério, tendo uma força cômica justamente pela semelhança com nossa (surreal) realidade e assim, tornando-se mais leve apesar do peso de seus temas. Equilibrando bem esse tom exagerado com uma atmosfera de horror, Medusa consegue ser o retrato de um tempo e mais uma obra que digere o terror político que vivemos nos últimos anos. Como fruto de seu tempo, sempre será inevitável lembrar o grito que estava entalado em tantos que compartilham esse complexo território que é o Brasil.


Mais do que um retrato de como a religião e o conservadorismo podam o desenvolvimento de tantas meninas e mulheres, Medusa é uma sátira de uma parcela da população que se esconde nas máscaras da hipocrisia e um conto sobre as assombrações do gênero que já veio ao mundo fadado aos julgamentos e punições.


Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Vitrine Filmes

Medusa chega aos cinemas em 16 de Março.


Nota da crítica:

4/5





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