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Oppenheimer (2023) | A mente destruída de um criador

Nolan não abandona seu estilo, mas se mostra capaz de provocar e ampliar emoções, transformando uma biografia em um thriller fascinante sobre uma mente assombrada



Quem conhece as obras de Nolan já sabe alguns de seus padrões, de trabalhar burocraticamente os sentimentos humanos, castrar seus personagens e ignorar suas mulheres, ter diálogos expositivos que precisam explicar tudo, mas, também de sua habilidade de operar o tempo e construir pela tensão e ação as emoções. Não é que em Oppenheimer ele abandone completamente seus defeitos, mas é como se, em dado momento, ele se libertasse de algumas de suas amarras para criar algo fascinante, maior que muitas de suas obras. Vemos muito de seus outros filmes aqui, e por boa parte do longa me lembrei das irritações que Tenet (2020) me provocou, por essa necessidade que o diretor tem de querer complicar tudo e parecer extremamente complexo nas informações que nos passa. Oppenheimer brinca com o tempo da história e com pontos de vista, não é simples, se costura nesse estilo de Nolan de complicações mas é também o que faz a trama interessante, sempre que parece que vai se tornar maçante demais com toda aquela falação burocrática o filme nos pega pelo ritmo acelerado como quem diz que algo está por vir, algo que estamos esperando muito. Tudo leva até o teste de Trinity, ponto que parece ser o centro da narrativa, para onde tudo caminhou e de onde tudo se transforma. A partir disso, o Oppenheimer de Cillian Murphy se torna um personagem mais aberto, que divide seus transtornos e emoções silenciosamente, ainda que o diretor apele para outros personagens como expositores de seus pensamentos, aproximando e absolvendo o físico sem esquecer nunca seu envolvimento e sua responsabilidade na criação de uma das piores coisas que a humanidade já produziu.


Muito se questionou sobre como, ou se, Christopher Nolan se posicionaria ao contar a história do pai da bomba atômica. Ainda que Oppenheimer seja o foco, o diretor deixa claro em seu filme que o projeto da bomba foi algo coletivo, sempre colocando as decisões e descobertas em salas com sua equipe reunida. Aquele ditado popular de que “é preciso um vilarejo para criar uma criança” parece se aplicar perfeitamente aqui, Los Alamos é esse lugar, a cidade construída muito pelo ego de J. Robert Oppenheimer para atingir seu feito, mas composta por muitas e muitas pessoas, famílias e estudiosos que fizeram parte cada um à sua maneira desse projeto. Mas, além disso, Nolan reforça a participação vilanesca dos Estados Unidos, por meio de Strauss (Robert Downey Jr.), nesse antagonismo clássico e até simples, que apresenta o ponto de vista sem cores, numa crescente de rancor do homem. Então, ainda que deixe claro as motivações de Oppie, sempre priorizando seu feito como uma conquista intelectual e de ego, mas também aproveitando as questões políticas como justificativas mais honestas - primeiro buscando derrotar Hitler e depois num pensamento tolo de encerrar a Segunda Guerra - ele coloca o físico nessa rota de culpa que assombra sua mente, muitas vezes aproveitando características do horror e a repetição de elementos durante todo o filme para construir a atmosfera dessa perturbação. Oppenheimer claramente se arrepende, entende as consequências de seus atos e não é o verdadeiro vilão aqui, mas uma ferramenta usada por outros para atender a interesses maiores.



Isso tudo fica mais evidente a partir de Trinity. Quando Nolan reconstrói o teste da bomba, sua habilidade de provocar emoções pela ação é elevada a outro patamar. Tudo que precede o clarão da explosão é uma tensão marcada pelo ritmo da montagem aliada a uma trilha sonora (fantástica de Ludwig Göransson) muito bem costurada para apelar realmente para nossa ansiedade, como se dissesse que algo fantástico vai acontecer a qualquer momento. O filme todo, até ali, parece ter caminhado para esse momento e o tempo começa a martelar em nossa cabeça tal qual a cena de Interestelar (2014) em que os anos passam em segundos, mas, muito melhor. A explosão silenciosa preenche a tela e Nolan filma esse fogo quieto como uma força da natureza, sua relação com a imagem constrói uma beleza fascinante e por alguns momentos, é possível se esquecer que aquilo é um terrível feito humano, e se aproxima de algo criado por um quase deus, uma manifestação natural do mundo. Mas, para não deixar dúvidas do terror do que estamos assistindo, o som invade tudo estrondosamente, trazendo a realidade, revelando Oppenheimer como seu criador, que volta a ser humano quando o impacto do som o faz compreender a grandiosidade perigosa daquilo que criou. Uma cena difícil de esquecer, que diz tanto, que provoca tantos sentimentos e é capaz de emocionar sem uma palavra, algo que eu não sabia que Nolan era tão capaz de fazer, até agora.


Depois disso, o criador se entende como o pai daquele objeto mortal, e todos, por um segundo, parecem compreender também o que fizeram coletivamente, mas a alegria de ver o sucesso de um trabalho tão duro toma conta do grupo, que eleva Oppenheimer a um patamar de um herói americano, com o diretor sempre nos lembrando a nação que está por trás disso. É só quando sua criatura é tirada de seu controle para ser usada por outros que o físico começa a ser consumido pela responsabilidade de seus atos. Ao escolher reconstruir as tragédias de Hiroshima e Nagasaki retratando a destruição dos próprios americanos que celebram a bomba, pelos olhos e mente do físico, Nolan reforça esse psicológico perturbado pela culpa e ainda reflete as consequências reais daquele trabalho no próprio país que as provocou. Todos os julgamentos que seguem, e aproximam o filme de uma obra de tribunal, martelam nos mesmos pontos: a crescente de culpa em Oppenheimer e a vilania dos Estados Unidos. Não é que Nolan quer dizer que o físico era apenas um cientista bonzinho e inocente, ele assume a problemática das ações de Oppie, mas também o coloca como uma peça usada por grandes poderes, logo após jogada para tomar a porrada que o peso da história viria a dar. Cillian Murphy é brilhante ao retratar esse homem complexo que, ainda que tenha seu distanciamento bem marcado, compartilha suas emoções silenciosamente.



O diretor parece se apegar em seus vícios e talvez não confiar tanto nesse potencial seu quanto de seu ator e insiste em dizer muito por meio de outros personagens. Emily Blunt, talvez a melhor representação feminina que o diretor construiu em sua carreira, ainda serve muitas vezes como um acessório pouco aprofundado, nesse casamento que é fracamente construído para ser o que se dá. Não é novidade que as personagens mulheres do diretor sejam pessimamente trabalhadas, porém há momentos em que ele a deixa brilhar, talvez um esforço de corrigir as críticas que recebe. Mas, ainda é claro que ele tem dificuldades em retratar o amor, o sexo e os relacionamentos, tudo nesses campos é frio, protocolar, distante e com pouco sentido. A relação com Florence Pugh, por exemplo, poderia até ser descartada e a cena de sexo, tão falada, é a coisa mais sem tesão que o cinema já fez. Nolan castra seu Oppenheimer, um homem que claramente é bastante sexual por tudo que o filme nos diz, mas que não é capaz de mostrar isso. Não podemos negar as fraquezas desse criador, e eu ainda poderia citar outros problemas, mas a verdade é que nem esses defeitos são capazes de ofuscar a grandiosidade que Oppenheimer consegue ser e os sentimentos que ele é capaz de deixar no espectador.


Em muitos momentos, as emoções provocadas criam uma imersão que quase nos faz esquecer que aquilo é uma história real, que marcou tanto a história, mas Nolan faz questão de não focar, ao final, numa obra que retrata pura e simplesmente a mente perturbada de um cientista usado por uma país para criar uma terrível arma. Ele entrega a consequência real, o mundo explodindo, o fogo consumindo essa terra em que vivemos. Nos torna cientes tanto da culpa de Oppenheimer, quanto partilha conosco a compreensão dele de que os feitos humanos serão responsáveis pela destruição do planeta.


Nota da crítica:

4/5


 



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