Spielberg nos leva entre a ilusão e a quebra dela, memória e registro, num caminho de amadurecimento do olhar para a arte e para a família
É de se esperar que alguém como Spielberg, um grande diretor que começou sua carreira na nova hollywood e tem filmes grandiosos no currículo, tivesse uma bela história de amor com o cinema para contar. Mas, “Os Fabelmans” é além de um filme sobre essa relação com a sétima arte, uma obra sobre família e o amadurecimento de um olhar para esse meio que nos forma. Afinal, esse lugar que nascemos e crescemos é quase sempre o combustível para não só nos desenvolvermos, mas também para criarmos, para o bem e para o mal. Aqui, Spielberg conta uma história otimista e amorosa, mas que também sabe olhar para os pontos negativos conforme cresce e aprende a olhar para os acontecimentos de outra forma. Do ponto em que o pequeno menino é apresentado à grande tela e ao espetáculo dos filmes, é tudo sobre seu ponto de vista, num longa que não o coloca como protagonista, mas sim como quem direciona o olhar, se comunica, vive e sente através do cinema.
Passando pelo crescimento de Sammy, a primeira parte da obra é tão feliz, visualmente e pelas atuações, que é quase fantasiosa. É um olhar infantil e inocente para um núcleo familiar alegre, apaixonado pela arte e por eles mesmos, parceiros e compreensivos. O berço ideal para construir uma base sólida nesses primeiros passos da paixão do menino para esse controle do olhar que começa com os trens, tão marcantes na história do cinema. É essa atmosfera fascinante e envolvente que permite que a criatividade de Sammy se desenvolva e evolua, com grande suporte da mãe (Michelle Williams) - representando o lado emocional - e com o uso técnico da câmera do pai (Paul Dano) - representando o lado racional. Mas, a representação da família feliz logo se mostra apenas uma ilusão e conforme o menino amadurece, seu olhar para essas pessoas também muda e começa a observar além do que parece ser, para os detalhes escondidos que a memória pode camuflar, mas um registro pode ajudar a expor. Assim, Spielberg joga sempre entre a ilusão típica da arte e a quebra dela e entre a memória afetiva e os registros filmados para contar uma história onde ele é o diretor dentro e fora da narrativa, manipulando e direcionando o olhar dos espectadores do mundo real e do mundo dentro da narrativa.
É pela imagem filmada que Sammy descobre algo que estava claro para nós - e se estava é porque Spielberg assim o fez - o afeto entre a mãe e o tio Benny (Seth Rogen) e é também pelo filme que ele conversa com Mitzi e conta a ela o que sabe, nunca com palavras, mas com imagens que seu olhar capturou, ainda que sem perceber. Aos poucos o menino percebe como pode usar esse direcionamento da câmera e da montagem para mostrar diferentes detalhes e contar outras histórias, manipulando a percepção de quem assiste ou passando a ideia que realmente quer contar. Os filmes se tornam sua forma de se expressar e existir, ao mesmo tempo em que ele sempre se retira do foco das situações vividas e se coloca nesse lugar de observação, construindo narrativas em sua cabeça e nas telas.
Tudo é sobre o olhar e o amadurecimento dele, que vem emocionalmente pelo viver e pelas experiências observadas em família, dos colegas e tecnicamente, pelo fazer cinema, operando a câmera e criando seus filmes, já que nunca vemos o garoto realmente consumir filmes ou estudar. Os olhos, que já são uma marca no cinema do diretor, talvez tenham aqui um de seus usos mais fascinantes e passam toda a grandiosidade dessa paixão pela imagem, tanto em Sammy quanto em todos que assistem a suas obras. Assim, constrói também uma relação do público com o artista, que serve de motivador para o jovem evoluir suas técnicas e sua forma de direcionar a percepção. É como assistir a jornada de um mágico que aprende a brincar com a ilusão e se torna experiente o suficiente para nos prender num universo onde não importam as falhas de seus personagens, o egocentrismo e algumas fantasias floreadas demais, queremos ser levados, queremos que ele continue nos dizendo para onde olhar.
Trabalhar com a criatividade significa usar toda nossa alma no que criamos, nossas experiências, nossos sentimentos e nosso repertório e isso inevitavelmente passa por nossa vida em família e como ela nos afeta. “Os Fabelmans” é a forma como um dos diretores mais famosos e importantes de hollywood quis mostrar sua vida, otimista demais às vezes, amorosa em alguns momentos, caótica e deprimente em outros. Verdade ou não, tanto faz, afinal, não existe memória, registro ou história que seja real, tudo é um ponto de vista que alguém quer nos mostrar e felizmente Spielberg sabe bem onde estão as coisas mais interessantes para apontar sua câmera.
Nota da crítica:
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