Documentário com trinca de diretores, o filme se levanta coletivamente como um manifesto artístico e político construído a partir de embates e dialogando com as ruas
Em 2016, Eliane Caffé lançava Era o Hotel Cambridge, misturando documentário e ficção para não só fazer arte, mas também criar um filme político de um prédio vivo em São Paulo e seus ocupantes. Não é surpresa que a ideia de Para Onde Voam as Feiticeiras tenha nascido após esse filme, com Eliane nas ocupações, não é só que ela já tenha afinidade com algumas temáticas, mas ela consegue dar vida e cor às questões que quer colocar em foco, dando espaço para quem tem propriedade partilhar sua experiência, nunca individualizando as pautas. É possível ver no documentário final muito do que começou sua ideia, mas também como ela se transformou durante o processo criativo. O filme faz questão de sempre expor como é um organismo quase vivo, que muda um pouco a cada reunião e se constrói coletivamente. O cinema é, afinal, uma arte mas também um trabalho, parte de uma indústria e não seria jamais viável sem uma equipe trabalhando junta para criar o produto final, e Para Onde Voam as Feiticeiras é um documentário que coloca o espectador dentro desse processo, no sentido mais artístico que há nisso e menos burocrático. Acompanhamos as reuniões e vemos as ideias surgirem e os embates nascerem quando diferentes pontos de vista são colocados, as diferenças de cada grupo geram atritos, mas são também elementos essenciais para que o filme se sustente. E mesmo que tantas pessoas opinem e façam essa obra juntas, há uma unidade, é um trabalho consistente que flui bem através dos diálogos que o ergueram.
Ainda que existam diversas pautas no filme, o coletivo e o embate parecem ser realmente as pedras fundamentais desse trabalho. Na direção, Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral dividem o comando, mas nunca se colocam nessa posição rígida atrás das câmeras e também, não se percebe - como é possível em alguns filmes com mais de dois na direção - uma mudança de olhares na narrativa. Porque tudo aqui flui e se faz com diversos pontos de vista, as 7 personagens também constroem o filme, todos se unem nesse propósito e o que poderia virar uma bagunça, se torna uma peça sólida. O filme é justamente sobre ele mesmo, dos processos criativos, debates entre membros da equipe onde cada um coloca sua vivência e como as pessoas nas ruas reagem a tudo isso. É possível identificar um maior destaque para as pautas LGBTQIA+ na narrativa, mas mesmo assim, tudo tem seu espaço e seu momento de expor suas dores, problemas, desejos e sonhos. Não se faz algo assim, que consegue abordar efetivamente tantas questões diferentes, sem uma coletividade.
É assim também que se vê a importância do embate. O documentário quer nos colocar por dentro dos momentos mais conflitantes do processo criativo, muitos deles em que Eliane Caffé (Lili para sua equipe), está na posição de ter suas falas rebatidas por outras pessoas na roda. Há um calor nesses enfrentamentos sobre transfobia, racismo e outras questões, mas sempre soa como uma repreensão com objetivo de criar, nunca uma briga vazia. É um grupo de pessoas diferentes entre si mas que se unem, seja por identificação na forma que são tratados pela sociedade ou por um propósito em comum, e a cada ideia que precisa ser questionada, há força no embate, que é necessária para se fazer entender e para levantar o resultado final com essa visão diversa. Afinal, o público que assiste ao filme pode (e deve) ser também composto por pessoas de todos os lugares, gêneros, raças e origens, com diferentes conhecimentos sobre as pautas que o documentário propõe. Então, até quando se faz um beabá do dicionário LGBTQIA+, pode ser didático demais, mas é sempre um movimento livre que o filme faz em forma de manifesto artístico, jamais soando simplista.
É bonito como, ainda que Para Onde Voam as Feiticeiras fale de questões tão sérias e dolorosas, como preconceitos, e toda a dor de um povo originário sendo devastado em suas próprias terras, há muita cor e vida no filme para algo que pulsa nas ruas do centro de São Paulo. Estamos acostumados a ver essas ruas sempre tão cinzas e sombrias no cinema e na televisão, mas aqui, elas são coloridas e vivas. Enquanto os diretores filmam as reações das pessoas aos movimentos artísticos que o filme encena, ou simplesmente a seus personagens existindo nesse lugar, mesmo nos momentos mais tensos, não se deixa acinzentar, nem visualmente, nem emocionalmente. Não é que todos sejam positivos, otimistas e cantem numa rodinha de violão, há coisas dolorosas, sim, mas há muita força para receber tudo isso sem perder a cor.
Vejo como tudo que é feito aqui convida o espectador a entrar nesse mundo e aprender algo, porque essas ruas que podem soar tão ameaçadoras, são os espaços que esses corpos filmados estão sempre, esses embates e discussões, são experiências comuns para essas pessoas. Elas vivem lidando com preconceitos, olhares tortos e ignorância, mas também vivem para criarem suas artes, construírem seus movimentos e baterem de frente, cada uma à sua maneira, sempre que necessário. Portanto, Para Onde Voam as Feiticeiras não é apenas um filme sobre pautas, mas construído por elas, por meio de muitas colisões de pontos de vista e um diálogo ativo com as ruas. É cinema como manifesto artístico e político que tem humildade para entender seu lugar e por isso, dá voz a tantos numa liberdade bem organizada para se fazer entender.
Filme assistido a convite da Primeiro Plano e Descoloniza Filmes.
Para Onde Voam as Feiticeiras chega aos cinemas em 31 de Agosto.
Nota da crítica:
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