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Foto do escritorRaissa Ferreira

Raquel 1:1 (2023) | O coming of age que quer desafiar a religião

Para questionar os preceitos religiosos, Mariana Bastos traça paralelos entre a violência de gênero, os textos bíblicos e o amadurecimento nas pequenas cidades do Brasil



Existem diversas obras que podem ser apontadas como referências ou com semelhanças a Raquel 1:1. Carrie, por exemplo, seja no livro ou em uma de suas muitas adaptações, também traça paralelos entre o amadurecimento feminino e o fanatismo religioso, numa pequena comunidade que julga e é punida pela adolescente transgressora. De Joana d'Arc até o mais recente Medusa (2021, Anita Rocha da Silveira) a arte continua a pensar as mulheres que desafiam a religião e a forma como as bases da sociedade foram construídas ao redor de textos sagrados que já colocam o gênero feminino como o mais perigoso e passível de julgamentos. Dessa forma, Raquel 1:1 traz um olhar muito brasileiro para algo que não é novo, mas que constrói dentro da nossa realidade, ainda como um efeito colateral da ascensão do conservadorismo evangélico em nosso país, uma resposta feminina para as violências sofridas e entaladas. Com uma Raquel (Valentina Herszage) forte, curiosa e questionadora, o longa de Mariana Bastos traça um caminho interessante e com muitos méritos, mas perde a força ao não saber como engatar um desfecho à altura de tudo que formou ao longo da narrativa.


Algo muito interessante na construção de Raquel 1:1 é a forma como durante todo o filme os fatos do passado da adolescente são inseridos gradualmente. A morte recente da mãe é o estopim para uma mudança para a pequena cidade natal do pai, tudo é sugerido em detalhes, sem grandes exposições explicativas em diálogos, mas as circunstâncias dessa morte são as grandes motivações da personagem se apegar a Deus e, ao mesmo tempo, questionar a religião. Para isso, o longa não usa uma reconstrução dos fatos por flashbacks, trocando as imagens pelo som. Ao invés de explorar visualmente a violência do feminicídio sofrido pela mãe de Raquel e um forte momento dramático que as duas viveram, a diretora escolheu remontar tudo pelo som na mente da adolescente, revelando seu estado emocional e seu interior, enquanto conta aos poucos o que realmente aconteceu. As vozes da mãe, os gritos do antigo namorado, objetos batendo, quebrando e o desespero de Raquel são ouvidos em momentos que a câmera nos aproxima dela, quase como um olhar para dentro da personagem, a removendo completamente de seu espaço, excluindo tudo que a cerca. Depois de muito vermos o cinema explorar frontalmente a violência contra as mulheres, diversas obras estão vindo na contramão, dando espaço para escutar as vitímas mais do que olhar seu sofrimento. No caso de Raquel 1:1, ouvir os acontecimentos não os ameniza totalmente, a tensão e a angústia ainda são latentes, o trabalho de som é suficiente para remontar o sofrimento em nossas mentes, mas ainda assim, tem uma abordagem que se importa muito mais com o psicológico, com as consequências do acontecido, do que com expor a imagem de uma mulher violentada.



Outro grande feito do filme é a presença forte de Raquel, Valentina Herszage já havia mostrado um grande talento em outra jovem no cinema nacional, em Mate-me Por Favor (2015, Anita Rocha da Silveira). Agora, ela conduz todas as dores e problemáticas de Raquel principalmente através dos olhares. De início, a jovem tem um olhar curioso para a nova casa, a nova cidade, para a igreja e para as pessoas, como quem vê o mundo pela primeira vez, em busca de conhecimento. Aos poucos isso se transforma em dúvidas e questionamentos, que caminham junto com algumas pistas do que aconteceu com sua mãe, que em seguida se transforma em uma obstinação por recriar a base da fé. Valentina faz tudo isso sutilmente em seus olhares e vai criando aos poucos uma grande força para Raquel, que é uma líder, ao mesmo tempo que é uma pessoa atormentada. Essa atenção e cuidado ao montar a protagonista se casa bem com seu entorno, um retrato bem familiar do interior brasileiro e seus costumes, que apesar de ter um olhar um pouco raso para esses personagens inseridos na comunidade evangélica, também carrega um bom tom cômico, ao ridicularizar esse universo, que balanceia a atmosfera escura e tensa desse horror.


Porém, se tudo isso vai caminhando em direção a algo, parece que não chega onde prometia chegar. O longa causa angústia e indignação, pela violência que Raquel vivenciou, pelas hipocrisias da pequena comunidade religiosa, pelos julgamentos que a jovem sofre, pelo sofrimento da amiga, Laura (Eduarda Samara), e nos engaja nessa jornada de reformular a palavra de Deus com uma inocência adolescente, de querer mudar como as mulheres são vistas e tratadas, como quem quer reescrever a própria história do mundo. Assim, expectativas são geradas, mas parece faltar coragem para a obra explodir tudo que incitou. É uma crescente de sentimentos criados, resultantes de tudo que nos é apresentado, para um final morno, que opta pelo simbolismo controlado, quando o tempo todo a narrativa parecia pedir para que Raquel queimasse o mundo.


A intenção de Raquel 1:1 parece ser muito mais um mergulho nesse amadurecimento jovem em guerra com um conservadorismo religioso que parece determinante para o que é ser mulher na sociedade, talvez por isso, não há um aprofundamento nas pessoas ao seu redor, o trabalho realmente notável aqui é em Raquel, tornando um tanto decepcionante esse caminho que parece ficar por isso mesmo, sem grandes reações. Mas ainda assim, é sempre bom ver nosso cinema lidando com o nosso tempo aos olhos das mulheres, questionando as prisões, antigas e novas, que nos cercam, e as condições que acompanham nossa existência. Se agora Raquel 1:1 escolheu não jogar toda a sua força contra a cidade que a julgou, como Carrie um dia fez, ainda é muito bom poder assistir a como muitas mulheres reagem com a arte e com o horror, a tudo que vivemos.


Nota da crítica:

3/5





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