Como quem se despede de uma fase do cinema, Kleber Mendonça Filho faz um retrato de si mesmo e de sua história de amor com a sétima arte
Noite cheia em São Paulo para a pré-estreia de Retratos Fantasmas em um cinema de rua. Não é a primeira vez que longas filas se formam na região para ver um trabalho novo de KMF, foi o mesmo em Bacurau (2019) e Aquarius (2016), ambos com eventos gratuitos de lançamento no cinema do Conjunto Nacional em que estive presente. Em 2016 com umas duas horas de antecedência era possível conseguir seu ingresso e ainda ver Sônia Braga, em 2019 foram mais de 5 horas e duas salas lotadas. Agora, Kleber fecha o cinema da rua Augusta com três salas para seu filme de um lado e mais o anexo, que quase se perdeu nos últimos anos para a construção de mais um prédio caríssimo no bairro. É inegável o tamanho da carreira do diretor, mesmo com todos os retrocessos e problemas que o cinema nacional enfrentou nos últimos anos, KMF segue atraindo mais interesse a cada novo trabalho, com sessões esgotadas em todos os cantos do país. E só uma pessoa com tamanho reconhecimento poderia fazer um filme como Retratos Fantasmas ser compreendido em larga escala, já que seu novo trabalho nada mais é do que um filme sobre seu próprio criador, atravessado por muito cinema, história e cultura de sua própria cidade, é verdade, mas nunca deixando de ser uma obra focada em Kleber, seu olhar e suas experiências. Mais do que isso, ele também mostra como todos os seus filmes tiveram um pouco, ou muito como em O Som ao Redor (2012), de sua própria vida. É muito comum esse reflexo dos artistas com suas obras, porém nem todos com apenas três (ou quatro) longas anteriores conseguem criar um público tão atento às suas referências, e em Retratos Fantasmas, uma boa parte do longa é um mapa de sua filmografia, gostosíssima de se ver para aqueles que conhecem seu trabalho, mas não incompreensível para outros.
Dividindo seu filme em três partes, é como se o diretor fosse do mais íntimo ao menos entre os atos, tornando o primeiro o mais interessante deles. Ocorre que a dinâmica entre a primeira e a segunda parte se funde muito bem, abrindo com sua história mais pessoal, sua família, a casa que serviu de cenário a tantos filmes - inclusive de seus muitos curtas - e os personagens acidentais ou não que se formaram na região. Kleber abre as portas de seu cinema para mostrar de onde veio muita coisa e os fantasmas que ficaram. Seu olhar é para as mudanças provocadas pelo tempo, quase como se fossem ações involuntárias, grades que subiram, prédios que mudaram, cupins que criaram colônias. Ainda que seja claro que tudo é efeito humano, Kleber se preocupa mais em mostrar os espaços como organismos que se modificaram ao longo dos anos, talvez se adaptando ao mundo. As únicas pessoas a quem ele dá o poder da transformação são sua mãe e seu irmão, que mudaram o apartamento de cinema com suas próprias mãos, cercado de transições ao seu redor. Quando parte para o segundo ato, saindo do lar e da rua tão explorados para passear pelo centro de Recife e seus antigos cinemas, Kleber expande seu mundo para uma história maior, mas não deixa de ser o foco, seguimos seu próprio mapa e tudo que ele conhece. Existe muito sobre o Brasil, sobre a cidade, sobre a própria história do cinema no nosso país, no entanto é tudo de seu repertório. Como sua mãe, KMF faz um trabalho de historiador, e transforma isso em uma despedida de um cinema que se vai.
Me parece que desde o começo dos anos 2000 estamos nos despedindo de uma fase do cinema, tema de outros filmes de outros diretores ao longo das décadas. Uma arte tão jovem ainda, mas não sei se desde seu nascimento não estamos sempre de luto por alguma de suas mortes. É por isso que várias cenas de Kleber em cinemas de rua sendo fechados lembram um pouco Adeus, Dragon Inn (Tsai Ming-Liang, 2003), o adeus é similar, o que muda é a perspectiva. Essa escolha do diretor em fazer algo tão pessoal não é de forma alguma um problema, a intimidade torna seu filme documentário mais caloroso, coloca o espectador apaixonado por cinema nessa reflexão de sua própria história com a arte e seus espaços para entender que o tempo já transformou tudo. Na própria pré-estreia do filme, o assistimos numa tela que em poucos anos pode ser a academia de um condomínio de luxo, seremos todos fantasmas dessa história um dia.
Assim, o último ato se torna o menos interessante por perder um pouco essa intimidade. Kleber parece falar menos do que realmente conhece e vive quando conta brevemente a história das igrejas e farmácias que tomam conta das cidades, é perceptível como sua presença muda na terceira parte. Talvez porque ainda estamos vivendo tudo isso, não é tanto um olhar para o passado, mas quando é mais pessoal, seu longa é muito melhor. O ar fantasmagórico, por vezes até de horror, nunca abandona a narrativa. A morte se faz presente, mesmo em vida, observando cada canto, pessoa ou animal como uma alma permanentemente gravada no filme. O poder do cinema de nos tornar imortais é para Kleber um poder captar os fantasmas que nos tornamos inevitavelmente. Para quem acredita na religião do cinema, a vida após a morte é uma realidade projetada todos os dias e há de haver ressurreição para uma arte que morre tantas vezes, com tantos fiéis dispostos a venerar sua existência.
Disseram por aí que Retratos Fantasmas era uma carta de amor ao cinema, eu discordo que seja esse o foco, é um filme puramente sobre Kleber Mendonça Filho, e como um bom apaixonado pela sétima arte, não teria outra linguagem a ser usada para contar sua própria história, seu amor por Recife, por sua família e por seus filmes. Ainda assim, o cinema está em tudo, ainda bem.
Nota da crítica:
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