Luiz Sérgio Person transforma a atmosfera de São Paulo em um filme de horror, de pessoas presas e corrompidas na metrópole do progresso
Nenhum outro filme capta a essência desta cidade, de onde agora escrevo, como São Paulo, Sociedade Anônima faz. Usando o recorte da classe média a partir de Carlos (Walmor Chagas), Person retrata o jovem sendo devorado pela cidade e seu sistema deprimente aos poucos, das pequenas ambições iniciais de vida, os trabalhos em fábricas tão importantes no progresso da capital e as mulheres que passam em seu caminho, ou, mais precisamente, as que são atravessadas por ele. Aqui, as emoções não tem chance de encontrar um bom lugar, Carlos se relaciona, se casa, faz amizades, tem um filho, avança na vida no sentido mais mecânico que há, mas não é capaz de ser feliz, de amar, ser amado, encontrar satisfação. Desde o começo é como se esse homem não tivesse uma casa para morar, a cidade é seu lar, filmado sempre vagando entre as ruas, as casas de suas amantes, motéis e bares, só encontrando morada quando finalmente casa-se com Luciana (Eva Wilma) e forma uma família - mais uma vez, no sentido mais protocolar. A necessidade de progresso de São Paulo também é sentida pelos que aqui vivem, não basta produzir capital para a cidade, é preciso também avançar com a vida, constituir família, garantir uma boa vida à esposa, criar filhos, viajar nos finais de semana para esquecer um pouco o ar tóxico da capital, almejar comprar outros imóveis, novos carros, aumentar o patrimônio. Essa classe média a qual Carlos pertence não é rica, é também engrenagem do sistema, força de trabalho, mas suas melhores condições financeiras servem também como uma algema que prende a esse falso progresso que sempre pede mais. São Paulo é faminta e se alimenta das almas que vagam por ela com pressa, desesperada por conseguir mais, sem tempo de realmente viver e sentir algo bom.
Há uma raiva latente em Carlos, uma frustração de sempre bater nas convenções dessa sociedade. Em seus empregos, mesmo que quisesse, não poderia ser honesto, para evoluir precisa fazer negócios duvidosos e quanto mais cresce na hierarquia, mais desonesto precisa se tornar. Não é patrão, dono da força de trabalho, mas mais um peão com responsabilidades e cargo alto, explorando aqueles abaixo dele pelas ordens de quem realmente manda, que no fundo, também é mais uma peça disso tudo, com mais facilidade de usar o capital a seu favor enquanto enterra outras pessoas no processo. Person transforma algo abstrato, esse sentimento, essa atmosfera da metrópole, em algo palpável e sufocante, enquanto cada vez mais sua obra se aproxima de um filme de horror. A felicidade de Hilda (Ana Esmeralda) vai morrendo aos poucos, observada por Carlos com certo distanciamento - como são todos os vínculos aqui - e o retorno da mulher à São Paulo traduz sua inquietação e ansiedade de conviver nesse lugar agitado e lotado, algo que já era tão sentido nos anos 60 e que hoje só se agravou. Ainda que conheça essas mulheres e se relacione com elas, o homem é incapaz de criar bons afetos, sua raiva sempre presente o afasta de qualquer relação significativa, assim como todos os vínculos parecem ser por oportunidades. Arturo não é simplesmente seu amigo, é um patrão que se aproveita dele e vive por São Paulo consumindo tudo que pode, as mulheres, a vida boêmia, os financiamentos para gerar mais capital, os trabalhadores pobres para sonegar e ganhar mais. Da mesma forma, Ana fica com quem lhe oferece melhores condições, seja uma lancha ou uma boa publicidade. Todos nessa cidade são corrompidos a pegar a melhor chance possível.
Para aqueles que se contentam com o vazio que esse progresso tem a oferecer, ir atrás do próximo bom negócio parece bastar, enquanto outros são esmagados. Hilda é retratada, já próxima de seu fim, em uma obscura cena que a aprisiona na escuridão de seu apartamento pela cidade grande iluminada pelo sol, com seus enormes prédios. Observar hoje essa cena parece bastante atual, não há uma janela em São Paulo que não seja dominada pela visão de milhares de torres construídas e outras tantas sendo levantadas, não é que Person imaginou o futuro, seu filme se torna um clássico atemporal por sua compreensão de seu objeto, por captar perfeitamente a essência dessa cidade, e essa, nunca muda, só piora. Enquanto seus personagens tentam tirar algo de bom dessa vida, se relacionando, observando obras de arte ou procriando para alimentar o avanço da sociedade, as pessoas adoecem e enlouquecem. Para Luciana a ilusão de uma vida tradicional como esposa e mãe, enquanto o marido cresce no emprego, lhe parece talvez a única opção, mas é apenas mais uma prisão para todos eles, uma de certa forma fácil de se escapar para Carlos enquanto homem.
Esses personagens são levados ao extremo para fugir desse sistema, seja escapando pela morte como Hilda, que mesmo após ir embora se viu de volta a São Paulo, como se fosse impossível escapar da cidade, ou abandonando tudo e tentando recomeçar em sua própria mente. Mas a metrópole do progresso não deixa ninguém sair de seu ciclo, se alimenta do desespero da busca por mais, da incapacidade de realmente se aproximar humanamente que gera solidão nas multidões, São Paulo tem fome de gente e todas as classes se tornam alimento desse sistema. Luiz Sérgio Person traduz um sentimento que não se alterou com o tempo, faz parte intrinsecamente da cidade, transformando São Paulo, Sociedade Anônima em um dos melhores filmes brasileiros que retrata as mazelas do capitalismo em seus maiores centros.
Filme disponível no Globoplay e Youtube
Nota da crítica:
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