Misturando uma abordagem documental e ficcional, Transe até ensaia uma crítica, mas acaba caindo em sua própria armadilha.
É seguro dizer que em uma sala de cinema de São Paulo, na rua augusta, durante a Mostra Internacional, grande parte do público será de esquerda, uma esquerda provavelmente distante da esquerda radical e que certamente é o único público com quem Transe consegue dialogar mantendo alguma impressão de ser um filme politicamente impactante.
O longa de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães foi gravado no distante ano de 2018, quando ainda não sabíamos muito bem o que ia acontecer, cenário muito parecido com o que vivemos hoje, aguardando a chegada do segundo turno que pode mudar nosso futuro pelos próximos quatro anos. Os poucos atores onde a narrativa se foca flutuam pela narrativa sem um apego a uma trama específica, é um filme que não parece ter objetivos certos para seus personagens além de documentar um tempo que vivemos emprestando suas vidas como cenário. Dessa forma, Luisa, Ravel e Johnny são tão partes da obra quanto Bolsonaro, Haddad, as manifestações políticas que ocorreram na época e as eleições em si.
O trio, que começa a viver junto depois de uma festinha pós manifestação no Rio de Janeiro, é o retrato de uma esquerda que se mostra tão alienada quanto o lado de lá que tanto nos revolta. Nesse momento da história que o longa se passa, estávamos ainda conhecendo esse lado assim como os personagens, portanto o choque e as surpresas de ver em pessoas queridas uma opinião política tão radical são características extremamente identificáveis. Com base na personalidade e estilo de vida dessas três pessoas, Transe parece até ensaiar uma crítica a essa esquerda que não sabe muito bem o que fazer, mas não sai do lugar. Debochando dos jovens que se desesperam com o surgimento de um político facista mas se preocupam apenas com o próprio umbigo, o filme tem bons momentos que conversam muito com o que vivemos agora. Assim como em 2018 não mudaria nada permanecer na bolha dialogando com as mesmas pessoas e se preocupar se os chakras estão alinhados ou com a posição dos planetas durante a eleição, hoje ainda não temos ações efetivas e permanecemos postando fotos de livros e gritando o fim de um governo em espaços onde apenas contemplamos pessoas iguais a nós com nossa indignação. É como se dissesse que estamos tão cegos quanto as pessoas que chamamos de alienadas.
Mas, infelizmente, Transe não tem força suficiente como cinema ou como política porque acaba por cair na mesma armadilha com que faz piada. Luisa é aqui a melhor peça, ela se sente inquieta e quer se movimentar, conversar com outras pessoas, atravessar para além do seu mundinho, mas não sabe como. Perdida como talvez muitos de nós, ela até tenta fazer algo para mudar o triste resultado que continuamos temendo, mas é em vão. Essa bolha que a cerca é a mesa de bar onde só sentam pessoas iguais a ela, uma classe média que vive bem apesar de nem parecer trabalhar, majoritariamente branca e que tenta quebrar os padrões, mas só daquilo que os convém. Em uma cena, uma mulher negra da mesa ao lado questiona os amigos de Luisa sobre a presença de pessoas negras e trabalhadoras nos protestos. Em outro momento, o amigo de infância dela se mostra bolsonarista. Esses momentos geram desconforto nos personagens, mas até que ponto? O mundo está ali, ao redor deles, acontecendo e mostrando que não serão eles, nas mesas com seus iguais que vão mudar esse abismo que os separa.
Assim, o filme vai acompanhando as eleições, caminhando nesses espaços, nessa bolha, mas quando poderia dizer algo importante sobre, não diz. Acaba em poesia, piano, violão, musiquinha e choro. É aplaudido, bem recebido no lugar onde mais tocaria as pessoas, dentro dessa mesma bolha. Falta coragem para essa obra que tenta ser um documento de algo que vivemos mas mostra um lado que só interessa a essas mesmas pessoas, não atravessa e não dialoga com mais ninguém.
Talvez, assim como Luisa e muitos de nós, Anne e Carolina, também não saibam muito bem o que fazer, como passar para além desse mundinho seguro que criamos onde dialogamos apenas com quem pensa parecido com a gente, indignados com as mesmas coisas, esquecendo que do lado de lá existem também trabalhadores, pessoas pobres e até nossas famílias que estão tão revoltados com a gente quanto nós estamos com eles. Esses novos inimigos que começamos a (re)conhecer em 2018 e continuamos sem entender e que agora, em 2022, ainda podem definir o jogo para os próximos quatro anos. Resta saber se vamos chorar e cantar ou em algum momento vamos nos levantar e fazer algo de verdade.
Visto na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022
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