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Foto do escritorRaissa Ferreira

Apocalypse Now (1979)

Numa atmosfera que mistura realismo com o pesadelo da loucura, Apocalypse Now diz tudo sobre a destruição da guerra, principalmente aquela que ocorre dentro dos homens.
apocalypse now

Quando o capitão Willard, que já não está em seu melhor estado de saúde mental, é enviado numa missão secreta para matar um coronel que enlouqueceu durante a guerra no Vietnã, uma de suas preocupações iniciais é que apesar de ter matado outras pessoas antes, dessa vez ele estaria matando um americano. A diferença entre a morte de qualquer pessoa e a de um americano é exposta em diversos pontos do filme. Nos vilarejos que os soldados passam a brutalidade é absurda, todos os ataques são mostrados com um olhar de loucura, as mortes são banalizadas, violentas, sem sentido, sem propósito. Os americanos tiram as vidas dos outros não só como se não fossem nada, mas carregados de ódio, um ódio cego patrocinado por homens de mãos limpas, sentados tranquilos longe desse inferno. Aqui, o Vietnã é como um outro mundo, no qual vamos adentrando cada vez mais fundo na loucura dos personagens enquanto observamos a guerra como um espetáculo. E, enquanto isso, Willard estuda seu alvo no barco, a caminho da missão final. O filme constrói aos poucos o coronel Kurtz como um homem sombrio, quase um mito, uma lenda, que gera fascínio no capitão.


Não há um homem em controle de sua mente aqui, todos foram consumidos pela guerra e pela violência, suas atitudes por vezes parecem animalescas, como se aos poucos, estivessem se separando completamente de sua humanidade. Nesse mundo tão masculino, em alguns momentos me parece que esses soldados tentam a todo custo protegerem ou se agarrarem à masculinidade que resta em seus corpos. Em um momento, sentam em capacetes para protegerem suas genitais, em outro ficam desesperados ao verem mulheres americanas.


Então, qual o espaço das mulheres, como elas são retratadas num universo onde a loucura do gênero masculino é protagonista?

No espetáculo com as coelhinhas da playboy a sequência toda coloca as mulheres como forma de entretenimento, o corpo feminino como espetáculo para divertir os homens tão quebrados, um incentivo dos patrocinadores da guerra como se essas mulheres fossem um produto de exportação. Numa onda de testosterona, eles enlouquecem mais uma vez, se comportando como animais em busca de uma presa e saem ao ataque das mulheres, desesperados para dominarem as fêmeas que se exibem para eles. E enquanto tudo isso acontece, aqueles tidos como inimigos observam de fora da cerca os mesmos homens que os matam todos os dias, se divertindo como se o mundo em ruínas ao redor não estivesse mais lá, nem dentro deles.


Em outra parada estratégica dos homens que acompanham Willard em sua missão, o capitão encontra o local onde estão as mesmas mulheres do espetáculo da playboy e resolve trocar dois galões de combustível por algum tempo com elas e seus soldados. Bom, se algum tempo antes as mulheres eram usadas como entretenimento, agora elas ainda são mercadorias que podem ser comercializadas num escambo. Quem é o dono dessas mulheres? Qualquer um, menos elas mesmas. Enquanto os soldados aproveitam seu tempo com essas mulheres, elas tentam conversar com eles, uma delas fala de emoções e sentimentos e ao mesmo tempo vemos a cena fechada em seus seios sendo expostos por um homem, sem mostrar a cabeça da mulher. Os homens manipulam elas como bonecas, arrumando seus cabelos e roupas, tentando reproduzir naquela mulher de carne e osso o que viram nas revistas, totalmente alheios ao que elas dizem. Eles querem a imagem da mulher e não a pessoa real. E, é claro que todos estão loucos, os soldados consumidos pela guerra e aquelas mulheres também, mas no caso delas isso parece ser representado por uma carência emocional, uma necessidade de comunicação, enquanto nos homens é mais uma perda de humanidade e sanidade que os endurece.


Os companheiros de missão de Willard morrem aos poucos. Quando um deles morre, ainda muito jovem, ouvimos a fita de sua mãe tocar, contando todas as expectativas de uma família para seu filho ainda muito novo, que foi lutar na guerra. Mas o sonho para ele acabou, sua vida foi destruída muito cedo por uma violência sem sentido, um retrato de muitos, de toda uma juventude ceifada por lutas que nunca foram suas. E é assim que no funeral desse soldado vemos uma bandeira dos Estados Unidos em farrapos, destruída, uma destruição de dentro desses homens que só não é maior que a que eles causaram ao seu redor. E no meio de tanta morte, sofrimento e fome, os soldados encontram a casa de uma família francesa que vive bem e faz banquetes mesmo com esse caos.

Nessa casa, Willard conhece uma mulher, e aqui temos um paralelo entre a forma como essa mulher é representada em relação às outras. Se as mulheres do Vietnã são inimigas e ‘cadelas’ esperando a morte, as americanas da Playboy eram corpos para diversão e mercadorias. Mas, a rica francesa que eles encontram é a mulher recatada, bem arrumada, delicada. Se a coelhinha era suja e usava pouca roupa, a francesa é limpa e bem vestida. Umas eram apenas diversão e sexo, essa é quase um interesse romântico, e não dos soldados, mas do capitão, mesmo sua nudez tem outra luz, seu sexo carrega outra delicadeza, seu corpo também é objeto mas não está a venda nem ensanguentado.


O momento que todos esperamos chega quando Willard encontra o local onde está seu alvo. Numa sequência carregada de horror, vemos o que parece uma seita, um culto bizarro com corpos espalhados e cabeças cortadas por todos os lados. Kurtz é tratado como um deus pagão por seus seguidores e todas as suas aparições são carregadas por sombras, fortalecendo essa mística do coronel enlouquecido, do lado sombrio tomando conta do homem. Quando Willard finalmente atinge seu objetivo, ele abraça seu lado escuro, seu renascimento é a morte de Kurtz e os seguidores do coronel largam as armas enquanto o capitão vai embora. Mas não há mais casa para voltar, não há mais vida além da guerra para Willard ou para qualquer homem que sobreviva a tanta violência.


O que resta em um homem quando seu lado sombrio toma conta?


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