Com proposta rigorosa e limitante de found footage televisivo, Cameron Cairnes e Colin Cairnes mostram falta de criatividade e habilidade para escapar das dificuldades
A ideia de Entrevista Com o Demônio (Late Night with the Devil) é extremamente atraente, o filme se apresenta como uma espécie de documentário que remonta uma história passada e recuperada de eventos que foram televisionados ao vivo e, após uma breve introdução que contextualiza tudo, o material é exibido na íntegra com imagens de bastidores adicionadas em preto e branco. A escolha de formato, porém, é tão ousada quanto complicada. Transmitir um programa inteiro de entrevistas, emulando o ao vivo, como parte principal de seu filme, requer se ater a certos posicionamentos e movimentos de câmera, um roteiro que preencha cada segmento e, ainda assim, segure o interesse até a atração principal chegar, e seguir uma encenação que pode ser limitante a depender de quem conduz o show. A estética dos anos 70 é até convidativa, há uma ambientação vintage que beira uma festa a fantasia, mas ainda consegue ser consistente, e certamente o maior feito do filme é tudo que envolve a transmissão ao vivo em si, das cores até, principalmente, alguma capacidade de manter-se dentro de suas limitações. O maior problema está em como o longa não consegue ser criativo nos outros momentos e denota certa preguiça ao simplesmente descartar a ideia que ele mesmo criou e insistiu em utilizar para poder trabalhar com mais liberdade dentro de suas inabilidades.
Quando a proposta é tão estabelecida como a da dupla Cameron Cairnes e Colin Cairnes, e dentro do próprio found footage, é necessário que a encenação trabalhe a favor das câmeras e para elas mais do que o oposto, já que os dispositivos estão lá quase sempre como desculpa e não como aparatos de grande controle de olhar. É só lembrar do maior clássico, A Bruxa de Blair, e como há uma cena famosa em que todos já estão fora de seus domínios e por isso as lentes se encontram no chão, sem alguém que direcione a gravação, então a encenação coloca um dos personagens parado e bem posicionado no quadro que essa limitação permite, criando uma das cenas mais aterrorizantes que o cinema de horror já fez. Mas, ache você isso ou não, a verdade é que esse sub-gênero precisa ser criativo e encontrar alternativas para funcionar, seja na evolução dos equipamentos que permite várias pequenas câmeras acopladas ao corpo ou recursos modernos que facilitam outras interações dentro da janela que uma webcam, por exemplo, abre. Em Entrevista Com o Demônio, as cenas de bastidores já são uma escapadinha meio preguiçosa dos diretores, que embora se mantenham muito dentro de suas escolhas durante o programa, optam por, dentro dos comerciais, removerem qualquer lógica das filmagens. São diversos pontos de vistas “impossíveis” inseridos sem justificativa para conseguir extrair das cenas momentos mais íntimos entre os personagens que, talvez na visão dos criadores, não teriam como ser feitos usando as gravações do talk show. Existem milhares de alternativas, mas aqui só podemos debater o que foi feito, e, nesse sentido, a fuga fácil ainda é até que passável, mas já denota uma falta de habilidade dos irmãos Cairnes.
Em outro ponto, nota-se que Entrevista Com o Demônio tem mais aptidão ao cômico que ao assustador, o que não é problema algum dentro do terror, mas constantemente uma objeção encontrada em obras que não se permitem levar a esse lugar e se apegam a uma seriedade que reduz bastante seus resultados. Em certa medida, este found footage televisivo ri de si mesmo e aproveita sua sátira com o formato e a época, mas quando as cenas mais carregadas na atmosfera sobrenatural ocorrem, esse potencial humorístico é escancarado e pouco abraçado. O caos ao final do programa é um bom exemplo, em que a menina possuída (Ingrid Torelli) flutua com a cabeça partida e sua força vai matando todos ao redor, é algo digno de uma esquete, mas é também o momento mais aguardado, e, assim, é quase como se a sequência fosse obrigada a ser tensa e assustadora enquanto sua estética grita o oposto. Essa questão é também um problema do próprio formato que, por se estabelecer rapidamente, se torna cansativo à medida que o espectador já está apenas esperando o grande momento chegar, tornando essa expectativa uma armadilha para o desfecho do filme que em geral é bastante simples, mas força os diretores a pensarem algo mirabolante para sobreviverem ao que construíram.
Chegamos assim ao assassinato final da obra que é seu verdadeiro desfecho, em que mesmo após um jogo bastante interessante entre a suscetibilidade do espectador e a verdade que as câmeras são capazes de capturar, e todo esse balanço entre a estabilidade da proposta dentro do programa e a fuga dos bastidores - tão preguiçosa quanto o uso de inteligência artificial nas artes que os intercalam -, os irmãos Cairnes optam por esquecer de vez tudo e simplesmente inserirem uma sequência que trai o restante e se torna exaustiva. Veja que a introdução estabelece uma relação entre quem assiste e Jack Delroy (David Dastmalchian), em que o apresentador é um mero objeto de observação do passado e nada elaborado durante o longa cria outro tipo de aproximação. Mesmo assim, depois de tudo sair de controle, o filme deseja entrar na mente desse homem e buscar um enlouquecimento psicológico a partir da entidade que está no palco. A razão de aspecto e a própria textura da imagem se alteram e a encenação, então, se torna apenas um ponto de vista comum de cinema, algo que confere liberdade aos diretores para fazerem o que quiserem nas cenas, mas que escapa às regras que eles mesmos criaram e seguraram ainda que escorregando nos intervalos. O vínculo criado entre a verdade captada nas lentes e a imagem que se cria na mente dos espectadores não existe mais, pois agora tudo é uma peça dirigida que não conversa com nada antes apresentado e, pior, rejeita mais uma vez o tom cômico porque vê necessidade em ser um desfecho impactante, ainda que óbvio e cansativo.
Como dizem, de boas ideias o inferno está cheio, e muito aqui soa como algo que poderia ser, mas não consegue por falta de criatividade e habilidade em trabalhar a encenação a favor da forma. É só ver quão simples são as imagens criadas por inteligência artificial que ilustram o filme, são alternativas que poderiam ser fabricadas, mas por preguiça ou incapacidade, se desviam em saídas fáceis e muitas vezes ruins.
Filme assistido a convite da Diamond Films e Sinny Comunicação
Entrevista Com o Demônio chega aos cinemas brasileiros no dia 4 de Julho de 2024
Nota da crítica:
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