Matteo Garrone retrata uma jornada de sonhos e sofrimento, mas nunca encontra um ponto que o torne mais do que um explorador das dores de um povo
Nos pontos mais fortes de Eu, Capitão (Io Capitano), também moram as respostas para suas maiores fraquezas. A introdução que retrata Seydou e Moussa como dois jovens alegres e sonhadores, vivendo com suas famílias e observando seus costumes, suas casas, o que gostam de fazer e as coisas mais comuns de seus dias, são cheias de vida e capazes de traduzir algo muito genuíno que somente parece possível pela presença de seus protagonistas, atuando como intermediários entre o autor - distante daquela realidade - e a obra final. Essa sensação mais autêntica também é presente nos momentos em que, durantes as muitas passagens da jornada, os primos encontram um acolhimento de comunidade entre aqueles da mesma origem, o Senegal, ou com os mesmos objetivos e sonhos. São frestas que se abrem entre apelos urgentes que o filme faz ao se aprofundar nas partes mais sofridas da viagem, e mostram uma humanidade que vem dos encontros e da solidariedade proveniente deles. Tudo isso flui naquela lógica já citada, como se Seydou e Moussa por alguns minutos fossem capazes de comandar a narrativa e emprestar suas afinidades e vivências para criar algo muito mais interessante e legítimo. Ocorre que Garrone deixa transparecer a todo momento que nada em Eu, Capitão lhe é familiar e, explorando o sofrimento de seus personagens da forma como faz, inseridos nessa busca tão distanciada do diretor, suas intenções soam mais falsas a cada minuto, além de empobrecerem a obra, tornando os momentos com mais potencial cada vez mais raros, até desaparecem de vez em uma súplica por emoção.
A forma como a areia se faz presente no filme, sempre grudada na pele dos meninos como um destino inevitável, é muito bem trabalhada desde as primeiras cenas, caminhando na aridez até finalmente encontrar a água. O longo e doloroso caminho pelo deserto remeteu a outra obra de 2023, Sira, da cineasta burquinense Apolline Traoré. Sira é ainda mais brutal ao retratar o sofrimento de uma jornada no deserto, mas ainda que sua abordagem com a protagonista seja questionável em alguns pontos, é possível traçar uma grande diferença de intimidade dos autores nesses dois filmes, com seus objetos. No ano passado, a Mostra de Cinemas Africanos trouxe diversos títulos recentes que pareciam conversar em um mesmo ponto: a necessidade de muitos países de manterem seu povo. Essa demanda pode ser vista em forma de denúncia das problemáticas políticas locais, mas principalmente no reforço da potência de suas culturas e pessoas. Filmes que fortalecem o poder das mulheres, suas forças e importâncias na estrutura da sociedade, que exaltam as cores das peles, a natureza, as roupas, estampas, crenças e comunidades. Mesmo na dor de Sira, existe essa presença, da força que vem da África e não precisa da Europa. O que acontece em Eu, Capitão é estranhamente inverso, o longa abre justamente olhando tudo que há de bom em Dakar para Seydou e Moussa, amigos, família, costumes, crenças, etc, mas, Garrone não apenas não consegue ser algo além de um mero observador casual para esses momentos, como também abandona tudo isso em busca da ideia do sonho europeu, estampado nas camisetas de times e nas mentes dos meninos, sem desbravar suas motivações mais afundo.
Não é a diferença das abordagens que torna uma delas boa e a outra necessariamente ruim, mas, ainda assim, uma delas demonstra que sua autora procura exibir tanto os problemas de um lugar, quanto suas forças, de uma posição que não é igual, mas ainda assim, próxima, e a outra se mostra totalmente distante, observando quase de um lugar mais alto um sofrimento exploratório. Falando mais objetivamente, Eu, Capitão, soa como a falsa empatia dos europeus com os povos de países longamente usados por eles, uma tentativa de aliviar a culpa estabelecendo um olhar privilegiado para suas histórias. Garrone, nascido em Roma, costumava conhecer essas jornadas de imigração apenas pela mídia, e é claro que não precisamos contar apenas o que vivenciamos na pele, mas é também óbvio que a posição do narrador sempre afetará o resultado. No caso do diretor italiano, seu posicionamento e intenção enfraquecem o filme, caindo sempre no mesmo recurso da dor, se aproximando com suas lentes até com fetiche algumas vezes, para implorar que aquilo evoque emoções de compaixão do espectador com aquelas pobres pessoas.
Quando em algumas cenas a fantasia entra como resgate de que aqueles são apenas meninos sonhadores, Seydou e Moussa até tentam novamente emprestar suas forças, mas é em tudo que Garrone abandona pelo caminho que sempre esteve o que seu longa precisava para se conectar de forma mais legítima com seu público. Acaba que Eu, Capitão quer tanto parecer bem intencionado em seu humanitarismo que esquece que seu ponto de vista transparece como a dor para ele é um grande espetáculo, explorando seus personagens para aliviar sua consciência.
Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Comunicação e Pandora Filmes
Eu, Capitão chega aos cinemas brasileiros em 29 de Fevereiro de 2024
Nota da crítica:
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