Os melhores documentários do primeiro semestre de 2024
Nesse ano resolvi fazer uma lista diferente e que nunca fiz antes. No final do ano passado decidi me aventurar e tentar credenciamento em festivais de fora do Brasil, só que para cobrir de forma remota. O primeiro não deu certo, fui recusada, mas como sou pobre e viajar para ver filmes está totalmente fora de questão (ao menos por enquanto) continuei pesquisando, conversando com colegas e tentando. O primeiro credenciamento rolou e em seguida veio outro, cobri em menos de dois meses dois festivais internacionais focados apenas em documentários. Foi uma overdose de não-ficção que me desafiou enquanto crítica, já que escrevi quase 30 textos nesses dois eventos, e me abriu novos horizontes pela diversidade de países e perspectivas. Além disso, entre um e outro aconteceu também o É Tudo Verdade aqui em São Paulo, ao qual consegui o credenciamento para cobrir presencialmente dessa vez.
Assistindo a tantos documentários sobre tantas coisas diferentes, pensei em trazer minha seleção de melhores do ano em duas partes, fechando agora o primeiro semestre de 2024 unindo tudo que vi em festivais, cabines e afins, todos os filmes não-ficcionais lançados nesse período ou exibidos em mostras, para elaborar uma indicação de obras que valem a pena ser vistas e que talvez cheguem por aqui, quem sabe por indicações em premiações, festivais dentro do Brasil ou até mesmo nos cinemas e streamings. Então leve essa lista como uma série de dicas de quem viu muita coisa de muitos cantos do mundo nesse semestre e espera que você também as encontre por aí.
*Note que a ordem não é exata por preferência e nessa pequena lista temos filmes de ao menos 9 países diferentes e mais da metade são dirigidos por mulheres.
Eros Rachel Daisy Ellis, Brasil
Quando se pensa nessa proposta de pessoas filmarem seus momentos em motéis, talvez o primeiro palpite do resultado seja puramente sexual, mas Eros consiste em muito mais do que isso, das interações humanas que acontecem nesse espaço arquitetado para encontros eróticos, atravessando questões morais, emocionais, de fé e de fetiches. No entanto, sua grande força mora no fato de que todos se tornam diretores, cada personagem com seu próprio dispositivo controla a trilha sonora, o enquadramento, a qualidade da gravação, sua abordagem, enfim, toda a forma e narrativa é blocada e se altera conforme os objetos mudam. Aqui, as pessoas controlam suas imagens e como querem ser vistas, provocando diferentes objetivos e revelando suas próprias vontades de se mostrarem como seres desejáveis e sexuais. Um dos meus favoritos do ano!
Assistido no Festival Internacional de Documentários de Copenhague
Salão de Baile
Juru e Vitã, Brasil
Juru e Vitã levam as câmeras para dentro dos salões de baile Brasileiros, mostrando como o ballroom se adaptou ao nosso país, principalmente ao Rio de Janeiro contemporâneo. Dos anos 80 pra cá muita coisa mudou, outras formas de existência foram ganhando espaço, mais pessoas tiveram a oportunidade de se compreenderem dentro de suas sexualidades e gêneros e a sigla LGBTQIA+ cresceu, então o documentário não busca apenas explorar como esse cenário se dá em outro país, mas também, como ele aceita ou não todas essas mudanças. A forma como isso é feito só poderia ser acessada por pessoas que conhecem aquele universo em sua intimidade, falando sua própria língua e transitando com suas lentes como grandes conhecidas, nunca como observadores estranhos que analisam os espaços cuidadosamente.
Assistido no Festival Internacional de Documentários de Copenhague
Shahid Narges Kalhor, Alemanha
Lançado como Alemão, país em que Narges Kalhor recebeu asilo há muitos anos e se formou como cineasta, mas com uma narrativa que existe puramente por seu vínculo com o Irã, Shahid se estrutura entre os muitos pilares que se formam nessas dualidades. A tensão entre o país de origem, que carrega histórias centenárias e influências marcantes em sua relação com a arte, e o país que a acolhe, possibilitando viver e trabalhar com alguma tranquilidade, é um dos caminhos que o filme percorre enquanto a Alemanha serve de cenário, largamente exagerado em suas burocracias, mas o Irã está sempre presente na dança, nas roupas, na cultura, na música e no debate sobre os muitos refugiados que não possuem a mesma sorte de Narges. Da mesma forma, o embate entre masculino e feminino e ficção e realidade, são forças fundamentais para essa obra que se faz abrindo totalmente seu processo para o público, é praticamente experimental, no sentido que diretora e equipe parecem usar suas próprias tentativas de como fazer um filme como parte indissociável do produto final.
Assistido no Festival Visions du Réel Crítica completa
Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida
Bel Bechara e Sandro Serpa, Brasil
Um dos filmes mais bonitos do ano certamente é o retrato íntimo da chegada de Gael para completar o lar e a família de Bel Bechara e Sandro Serpa. A espontaneidade com que o casal de diretores abre sua vida, sua casa e emoções para esse projeto se dá por uma motivação bastante bonita, não é diretamente com o espectador que eles falam, mas com o Gael do futuro, o filho que poderá ver e compreender como foi que chegou àquela família. Bel e Sandro montam seu ninho e se preparam psicologicamente nesse processo complexo, utilizando o cinema para eternizar cada etapa, de um cenário terrível compartilhado com todos os brasileiros, até o universo tão particular dessa família se completando.
Assistido no É Tudo Verdade
Fernanda Young - Foge-me ao Controle
Susanna Lira, Brasil
Tudo que um filme sobre Fernanda Young não poderia ser era careta, e documentários, ainda mais biografias, em formatos pouco criativos, com entrevistas desinteressantes, temos aos montes, mas felizmente Susanna Lira sabe falar na linguagem que Fernanda usava para se comunicar com o mundo e cria muito mais um manifesto que une as artes do cinema e da literatura, para montar poeticamente as muitas imagens dessa grande mulher. Não é exatamente como se Susanna entregasse a Fernanda a voz em seu filme, ainda que a narradora muitas vezes seja a protagonista, e não existam interferências de equipe nem entrevistas montadas para o documentário, entre as costuras de seus livros, imagens de arquivo e áudios recortados, é possível sentir a presença de algo que une tudo em um propósito, que gerencia os fragmentos para que se elaborem em uma linguagem que combine com Fernanda, linear mas também livre.
Assistido no É Tudo Verdade
Motherboard
Victoria Mapplebeck, Reino Unido
Quando Jim nasce é 2004 e o mundo ainda começava a entender a era digital, mas Victoria já sentia a necessidade de voltar a fazer filmes e capturava todos os seus momentos com uma câmera de vídeo. Ao longo dos anos suas filmagens se adequam ao momento até se tornarem o que hoje conhecemos tão bem e assistimos a todo instante nas redes sociais, os iphones tomam conta mas a linguagem de Motherboard conversa tanto com os anos 2000 que nenhuma imagem parece antiga demais, nenhuma resolução causa um grande contraste, Victoria se apropria da estética de cada breve época, e suas tendência, para construir um filme que fala com o tempo que passa e se altera de acordo com a vida.
Assistido no Festival Internacional de Documentários de Copenhague
Othelo, O Grande
Lucas H. Rossi, Brasil
Quem melhor para falar sobre Othelo do que o próprio? O filme que permite à grande figura, pessoa e artista contar sua história, a do cinema brasileiro e até mesmo de nossa sociedade, atravessada pelo racismo. Com o material rico que tem em mãos, diretor e montador operam para reconstruir uma vida que é patrimônio cultural, confiando no potencial dos filmes e falas de Othelo, sua vida e obra basta para dar corpo a um retrato emocionante sobre a arte, sobre ser um homem negro no brasil, sobre fazer cinema aqui e ver tudo isso se modificar ao longo do tempo.
Assistido na abertura da OJU – Roda Sesc de Cinemas Negros
(O filme passou por diversos festivais e exibições no Brasil)
As 4 Filhas de Olfa
Kaouther Ben Hania, França / Tunísia
As 4 Filhas de Olfa esteve em Cannes em 2023 mas chegou oficialmente aos cinemas brasileiros em Março deste ano. A diretora Kaouther Ben Hania permite, por meio das encenações, entrar no íntimo de uma história complexa e real. A contratação de atrizes e atores para compor o filme é exposta desde os primeiros minutos não apenas como uma escolha narrativa, mas como quem divide com o espectador a intimidade de seu trabalho. Kaouther não escolhe simplesmente fazer um longa e exibir seu resultado final, mas expor seu processo por dentro para, por meio dele, construir uma narrativa que seja capaz de compreender as pessoas ali envolvidas, as desafiar e questionar, desbravando uma história complexa que envolve traumas geracionais, política, religião e gênero.
Assistido em cabine - Distribuído nos cinemas do Brasil
Reas
Lola Arias, Argentina / Alemanha
A câmera centralizada em planos mais abertos, cenários minimalistas mas sempre coloridos, uma fotografia que preza pela luz e dá vida até às celas da prisão, vez ou outra focando em detalhes, dos corpos, dos rostos, dos movimentos. É assim que a mise-en-scène de Reas se aproxima de um teatro bastante lúdico, e um tanto amador, para que as histórias de pessoas sejam contadas, sejam elas mulheres em sua maioria, cis ou trans, mas também homens trans usando a atuação para dividirem suas trajetórias, pessoas de todos os tipos de corpos e personalidades, carecas ou loiras, com tatuagens ou sem, mães ou não, femme queens se manifestando por suas performances de mãos, enfim, personagens em geral falando por meio das músicas e das encenações sobre questões muitos verdadeiras.
Assistido no Festival Visions du Réel
Amanhã
Marcos Pimentel, Brasil
Marcos Pimentel filma crianças de diferentes classes sociais em 2002 e retorna para encontrá-las em 2022. Seu filme se torna então, um exercício que lida com a dinâmica mutável da vida real, abraçando percalços e ausências para retratar o abismo que separa um país. A intimidade que o diretor consegue traçar com seus personagens em 2022 lembra algo que Coutinho fazia como ninguém. Entrar na casa das pessoas, e as convencer a dividir algo tão pessoal, já é um desafio, mas se inserir em suas vidas e também se tornar cúmplice delas é ainda mais difícil. Quem conhece as obras do grande mestre do nosso cinema sabe como ele era recebido a cada entrevista, assim, sua relação com seus personagens era fundamental para o resultado final. Pimentel consegue aqui, de certa forma, absorver um pouco disso, estabelecendo um vínculo com Julia, Cristian e Cristiana que o permite costurar seu filme enquanto a vida deles acontece, abraçando cada percalço que aparece e os transformando em narrativa.
Assistido em cabine - Distribuído nos cinemas do Brasil
The Mother of All Lies
Asmae El Moudir, Egito / Marrocos
Existe memória sem imagem? Por meio da ausência de registros seus e de sua família, Asmae El Moudir faz um exercício de terapia coletiva remontando traumas e vivências com maquetes e representações de cada pessoa em miniatura. Sem fotos, nem vídeos, nem nada, cada lembrança é contada por quem as viveu, pelo que se sabe, se escuta ou o que ficou preso na memória. O filme coloca muitas vezes o próprio sentimento de quem carrega a história, sua relação com os momentos contados, para depois aos poucos revelar os acontecimentos que marcaram o bairro, a cidade e o país, durante os anos de chumbo no Marrocos. Mas, quando se fala da Matriarca, a velha senhora ditadora daquela família, sua própria história parece apagada, silenciada por ela mesma, e tudo se remonta com muito rancor em relação a essa dura figura para que, no fim, sua emoção e trauma também seja revelado. Embora acabe em alguns momentos explorando demais a dor de terceiros com suas lentes, é quando fala de si e daquilo que lhe é mais próximo que Asmae mostra um olhar mais autêntico para aquele universo e sua forma bastante criativa de o representar. Pessoas usam seus próprios bonecos e a maquete do bairro para lidar com suas questões, como se o filme criasse para elas a chance de olhar as imagens de um passado nunca registrado, construindo novas memórias e novas relações entre eles.
Assistido no Festival Internacional de Documentários de Copenhague
Fale Baixinho
Pedro Balderama, Brasil
Quando os 16 minutos de Fale Baixinho se iniciam, é como voltar para casa - quando se está a muitos dias assistindo a obras de todos os cantos do mundo -, a identificação dos símbolos, gestos, cenários e maneiras de ser, tão brasileiros, é imediata. Maria Onardina é uma típica avó, mas uma pessoa totalmente fora do comum. Uma mulher atravessada por todos os problemas e opressões comuns a seu tempo e espaço, ao mesmo tempo em que é um ser humano único em sua forma de enxergar a vida. Talvez essa descrição seja banal, pois todos somos únicos e diferentes, enquanto compartilhamos questões do meio que nos cerca, mas é a percepção de Pedro Balderama, o neto e cineasta, que torna esse retrato tão bonito e tão especial. Ele compreende a avó, ou ao menos esse recorte que nos é apresentado, e a retrata com um afeto que transborda até nas menores intenções de seu filme ou de sua câmera, Maria fala e Pedro não questiona, pergunta mas dá espaço para ouvir, tudo no seu tempo, do seu jeito.
Assistido no Festival Visions du Réel
Favoriten
Ruth Beckermann, Áustria
Demora um pouco até que o espectador mais estrangeiro ainda a esse universo compreenda que em Favoriten as crianças não falam alemão como sua primeira língua, e por isso até as somas mais banais levam tempo até serem resolvidas. Durante três anos da formação básica dessas crianças, Ruth Beckermann acompanha quase que totalmente passiva seus dias na escola com a mesma professora, a também imigrante Ilkay, uma mulher determinada a ensinar além do ponto de vista cultural proposto em cada casa, e a utilizar a sala de aula como janela para o mundo, de outras visões, formas de ser, mas principalmente, de tornar o alemão uma língua totalmente presente e natural para que essas crianças possam se desenvolver com mais tranquilidade em suas novas realidades, as da Europa.
Assistido no Festival Visions du Réel
Okurimono
Laurence Lévesque, Canadá
A palavra japonesa “okurimono” se traduz para algo como “um presente”, uma herança deixada para trás, que aqui é tanto o que Noriko encontra entre os pertences de sua falecida mãe, quanto sua generosidade em partilhar sua história com Laurence Lévesque. A diretora norte americana que conheceu a mulher japonesa no Canadá, por meio da família de sua companheira, atua praticamente em colaboração com Noriko, deixando que ela opere a condução a partir de seu olhar, já que Laurence é puramente uma estrangeira e Nagasaki parece ter muita dificuldade em se abrir sobre seu passado. Para muitos, é possível que até que os créditos apareçam ao fim, a impressão que fique é que a própria protagonista foi a diretora do filme, de tanto que a cineasta se coloca nesse lugar bastante humilde, puramente atrás das câmeras.
Assistido no Festival Visions du Réel
Toda Noite Estarei Lá
Tati Franklin e Suellen Vasconcelos, Brasil
Mel Rosário contraria a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil por muito, com quase 60 anos, um salão de beleza e uma crença muito forte em Deus, sua principal batalha além da diária para sobreviver, também como qualquer pessoa pobre no país, é contra a igreja evangélica do bairro que não permite sua entrada. Além dos protestos que a mulher faz todas as noites com cartazes na frente do local, um processo judicial corre há anos, e mesmo depois de perder, recorrer, vencer e retomar a ação, Mel segue um embate diário para poder exercer sua fé no pequeno espaço que a rejeita. Tati Franklin e Suellen Vasconcelos acompanham durante anos, com espaço entre as filmagens, a jornada dessa mulher que atravessa o momento político que já tanto conhecemos, a eleição de Bolsonaro. As documentaristas não se fazem presente pela imagem, mas suas vozes e intenções dão sempre as caras, lembrando que o aparato cinematográfico existe, embora seja Mel muitas vezes que as chame ou as convide a filmar algum momento.
Assistido em cabine - Distribuído nos cinemas do Brasil
Invisible People
Alisa Berger, França / Alemanha
O que Invisible People faz é muito rico porque não apenas apresenta seu objeto, como o faz parte de sua própria forma. Parece muito difícil explicar o que é a dança Butoh e Alisa não pretende ser totalmente didática aqui, é preciso se deixar levar por suas imagens para aos poucos compreender essa forma de arte, ainda que não completamente. Inicialmente, a cineasta apresenta sua história como um conto distante e se remove de seu filme quando é hora, a autora aqui tem um fascínio por essa dança e por toda cultura ao seu redor mas parece entender seu lugar e, assim, coleta relatos, pessoas e suas relações com o butoh para tentar explicar visualmente e sensorialmente o que ele é. Seu documentário flui como essa própria arte, deixando as imagens falarem, por vezes em longos minutos apenas com a trilha sonora, em outros momentos as sobrepondo com vozes que aparecem cada hora em um idioma diferente.
Assistido no Festival Internacional de Documentários de Copenhague
Immortals
Maja Tschumi, Iraque / Suíça
A partir da Revolução de Outubro de 2019, Maja Tschumi pega emprestadas as vivências de dois jovens de 20 e poucos anos, Milo, uma mulher que sofre grandes opressões dentro de casa, principalmente por parte do pai, e acaba encontrando segurança nas escapadas ao se vestir como um homem, e Khalili, um rapaz que usa suas câmeras para documentar as revoltas, se enfiando em todos os perigos dos conflitos com suas lentes como armas e escudos. A revolução que ocorre nas vésperas da pandemia acaba levando muitos jovens ao isolamento com suas famílias, os afastando dos protestos, mas ao longo dos anos a instabilidade volta a crescer junto com a violência e uma ameaça de piora na situação do Iraque, e assim, muitos jovens começam a buscar a opção de criar passaportes para fugir do país.
Assistido no Festival Internacional de Documentários de Copenhague
Comments